segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018
Caleidoscópio 70: Luiz Carlos Salatiel & Los Fractais celebram um tempo que não quer ser esquecido
Foto: Kathylene Furtado
Texto: Carlos Rafael Dias
A estreia do show Caleidoscópio 70, ocorrida no início deste mês fevereiro, durante o VI Festival de Música Cordas Ágio, em Crato, suscitou algumas ponderações, das quais eu julgo importante comentar duas delas.
Em primeiro, a realização de um espetáculo carregado de forte simbolismo e protagonizado por um artista igualmente emblemático, poderia ser interpretada como um sinal de coroamento de uma longa e profícua trajetória artística. Mas não o é. Luiz Carlos Salatiel, esse ‘tal artista’, está prestes a completar 50 anos de vida artística, cuja marca principal é a obsessiva capacidade de surpreender, nunca aceitando a busca de uma carreira consolidada pelos cifrões do sucesso ou pelas críticas favoráveis veiculadas na imprensa. Essa trajetória, que já surpreende pela longevidade, alcança ainda maior expressividade se atentarmos para o fato dela acontecer praticamente em solo nativo, distante dos centros detentores e monopolizadores dos holofotes midiáticos tidos como necessários para a consagração de uma carreira artística. A segunda reflexão é sobre o conteúdo do espetáculo, ou seja, o repertório praticamente garimpado na parceria que Salatiel manteve com Geraldo Urano, um dos mais importantes e reconhecidos poetas nascidos no Cariri.
Metaforicamente, a aproximação de Salatiel com Urano nasceu de uma colisão cósmica entre dois astros que irradiam luz própria, destinada a provocar alguns cataclismos de efeitos invertidos nessa nossa terra-mãe. Ambos nasceram praticamente sob o mesmo céu astrológico, no ano da graça de 1953, influenciados talvez pela sincronicidade histórico-cultural que prenunciava a ocorrência de um iminente turbilhão universal. O rock’n’roll dava seus primeiros acordes e os poetas da geração beat desafinavam “o coro dos contentes”, aplainando o terreno para o encontro físico dos dois, que viria a ocorrer no início da década de setenta, no seio do Movimento de Juventude do Crato - MOJUCRA, braço ativo da Pastoral de Juventude da Igreja Católica. Este era o espaço possível de participação para uma geração sufocada pelo establishment perverso que vigorava na época, tendo à frente o aparelho repressivo do regime militar instaurado pelo golpe de 1964. Foi sob essas condições que Salatiel e Urano idealizaram o Festival da Canção do Cariri, realizado em Crato de 1971 até 1978, quando surgiu toda uma geração de músicos compositores regionais, como Abidoral Jamacaru, Cleivan Paiva, Luiz Fidélis, José Nilton Figueiredo, Pachelly Jamacaru e poetas como Rosemberg Cariry e José Flávio Vieira, dentre outros. Concomitantemente, iniciou-se também a parceria musical da dupla, gestada no ‘útero eletroacústico’ da banda Cactus, vencedora daquele primeiro festival. Por isso, segundo Salatiel, “o show poderia ter sido feito nos anos setenta. Se não foi possível lá é porque era para ser feito agora com a mesma irreverência, timbres e cores caleidoscópicas daqueles loucos e apaixonantes anos”.
A parceria entre Salatiel e Urano, além de profícua, foi longa, pois durou enquanto o poeta viveu e a amizade fraternal entre os dois permaneceu. Por isso, ela trata de um leque de temas sintomáticos de uma época marcada por extremos paradoxos; uma época que pode ser resumida na frase que o violinista Yehudi Menuhin disse para descrever o século XX como um todo, “[um tempo] que despertou as maiores esperanças já concebidas pela humanidade e destruiu todas as ilusões e ideais”.
As esperanças despertadas, notadamente entre os anos sessenta e oitenta do século XX, podem ser traduzidas pelas radicais transformações impulsionadas pela revolução contracultural protagonizada pela juventude, acenando para a possibilidade de a humanidade ser redimida dos males que lhe são intrínsecos, sob a marcha iniludível da própria civilização que se construía. As desilusões, no entanto, também triunfaram sob o tropel dessa mesma civilização que se mostra temerosa das radicalizações inerentes às transformações sociais imprescindíveis ou inexoráveis. Essa gangorra existencial, que para muitos, em ambos os lados das trincheiras, encarnam a maniqueísta luta do bem contra o mal, marcou com profundidade a produção cultural daquele período e, por isso, permeia as composições assinadas pela dupla caririense.
Salatiel e Urano cantam a dor e o contentamento de terem vivido esses duros, urgentes e delicados tempos. E o fizeram com base na arte, ao mesmo tempo, engajada e diletante, mas sempre provocadora de catarse. Tal como o filósofo Nietzsche fez, elegeram a música e seus significados para a afirmação da vida: amor, liberdade, fatalismo e morte. Daí o tom de tragédia e celebração que o espetáculo Caledoscópio70 carrega na sua concepção e interpretação. Em outras palavras, o verso uraniano: seja feliz mastigando o seu chiclete.
Canções de amor e resistência – O repertório do espetáculo, como se disse, reflete notadamente os sonhos e os pesadelos vividos em terras sob o Trópico do Equador: Brasil profundo, anos de chumbo, caleidoscópio setenta, ‘profundezas que cintilam constelações’. São canções de amor e resistência cantadas, gritadas e sussurradas sob/sobre uma muralha sonora construída, tijolo a tijolo, pela competente banda Los Fractais, integrada por Vinícius Saravá (teclados), Stênio Alves (Guitarra), Thiago Leonel (contrabaixo) e Remy Oliveira (bateria). A propósito, a relação entre Salatiel e a ‘garotada’ da banda é de puro mutualismo: eles se retroalimentam de experiência, sabedoria e energia. Assim, a pegada roqueira dos jovens músicos, com direito a citação de Voodo Child (Jimi Hendrix Experience) não encobre o ecletismo das influências por todos sofrido, vide igualmente as citações de O Guarani (Carlos Gomes) e de repentes de violeiros de feira -, que, ao lado do domínio de palco de Salatiel, fortemente influenciado pelo teatro de Antonin Artaud, são exemplos de virtuosismo e sacação para reafirmar o universalismo que sempre foi a marca da parceria desses que são considerados os glimmer twins caririenses.
Contradizendo um verso de uma das mais representativas canções do repertório – nada de novo pelos corações modernos -, o espetáculo Caleidoscópio 70, é uma prova de que, sim, há novidades no front da cultura brasileira. Novidades inteligentes e de qualidade e que podem nos abstrair um pouco do lixo que assola o nosso pobre e ao mesmo tempo multimilionário showbiz. Em meio à profusão de ‘vittars’ e ‘anittas’ da vida, Caleidoscópio 70 pode funcionar como uma ‘vittamina’ (oh, infame trocadilho!) para a mente e o espírito, olhos e ouvidos dos deserdados amantes da boa música. Nunca os versos cáusticos e ferinos, mas às vezes docemente românticos de Geraldo Urano, e a performance desabusada e instigante de Salatiel, emoldurados pelo som encorpadamente psicodélico dos Los Fractais, são tão indispensáveis como agora.
Contatos para show
Facebook: www.facebook.com/ocaleidoscopio70/
E-mail: ocaleidoscopio70@gmail.com
Telefone: (88) 9 9806-4693
Produtor executivo: Edmilson Alves
sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018
Longa vida, ágeis mãos...
“Eu sou uma parte de tudo, tal
como a hora é uma parte do dia.”
Epicteto
Nestes
dias comemoramos uma história de vida que, simplesmente, quebra a
inexorabilidade desta regra. O percurso de um desses raros visionários que cedo
entendeu : diante de uma tragédia social reiterada, planejada meticulosamente ,
sempre era possível fazer a nossa parte, mesmo ante as crônicas cegueira e
surdo-mudez dos governos instituídos. O Padre Ágio Moreira escolheu o trabalho
social como intensificador de sua existência. Intuitivamente, despertou para as
forças libertadora e transgressora da Arte e foi assim que, há 50 anos, fundou
a SOLIBEL -- Sociedade Lírica do Belmonte -- aqui em Crato. Inserida numa
comunidade periférica e rural, de pequenos e pobres camponeses, a Música ,
simplesmente, mudou destinos, transformou mentes e corações, imantou gerações
com novos valores e novos encantos, abrindo horizontes e perspectivas. É que a
Arte tem esse poder único de conectar espíritos e de inseri-los como peça única
e insubstituível da grande colcha de
retalhos universal. E imaginar que a música erudita, tida sempre como de elite
e inalcançável aos mais humildes, seria
capaz de enfeitiçá-los e enebriá-los ! Emociona-nos ver, hoje, a nobreza aplaudindo os humildes camponeses
que provam que é possível manejar tão bem a enxada e a foice como o violino e o
violoncelo ! Parece claro que todas as nossas diferenças são uma questão inerente ao acesso e à
oportunidade.
Quebrando
todas as normas, o brilho do nosso sacerdote o fez longevo, fazendo com que sua
missão ultrapassasse uma centúria e, ao contrário do que seu nome pareceria
indicar, não recebeu lucros da sua messe e do seu trabalho hercúleo nunca
auferiu nenhum ágio.
São
estas pequenas e individuais ações que movem as catracas do mundo. A evolução
da humanidade sempre dependeu de visionários que conseguem enxergar para além dos
muros do seu pomar. Melhorar um pouquinho o colorido do meu retalho faz com que
toda a colcha fique mais bela e mais fulgurante. Que país construiríamos, se a caridade fosse substituída pela justiça
social e se os governos instituídos gozassem da mesma força e sensibilidade do
nosso Padre Ágio Moreira ?! A SOLIBEL ,
apesar de todas as desesperanças e percalços dos últimos tempos , ensina-nos
todo dia a música e a coreografia de novos tempos que se prenunciam.
Crato, 02/02/18