sexta-feira, 31 de agosto de 2007
Nada
Apenas uma franca , clara e cristalina constatação. Sequer sobraram margens para dúvidas, nódoas de previsibilidade. Como um raio que fraturasse o firmamento: a rapidez elétrica da faísca, o leve sobressalto e a espera visionária do trovão. Sem maiores divagações, sem alusões científicas, sem a metafísica explicação do inexplicável. Um corpo no meio da sala, o dedo ainda agarrado espasmodicamente ao gatilho, um fio de sangue manchando o tapete, um cartucho ainda fumegante rolado no chão . No ar , um mal disfarçado ar de interrogação, como se para tudo neste mundo houvesse necessidade de um motivo, de uma linear etiologia. Ao redor os móveis e as pequenas coisas do dia-a-dia mantinham um inatingível clima cotidiano. O cigarro posto à beira do cinzeiro ainda deixava escapar a ondulante fumaça . A TV transmitia um programa qualquer, ao que parece adivinhando a falta de espectador. O jornal caído na lateral da cadeira de balanço, estampava uma destas manchetes repetitivas. Os quadros na parede compunham uma paisagem já trivial e gasta. O concreto parecia demonstrar que nada concretamente mudaria no planeta com um ato qualquer, por mais grandioso e abstrato que se apresentasse. De novo , quebrando a unicidade da atmosfera, somente a rubra linha cortando transversalmente o piso, como que apontando para uma direção vaga e ocasional. Não ficaram bilhetes, recados: talvez o ato por si só fosse auto-explicativo, não carecia de legendas. O mundo rotularia a cena de muitas maneiras e a ficção sempre é bem mais brilhante e prenhe que a pobre realidade. Apenas aquele corpo inerte pintado em vermelho no tapete da sala destoava do cansativo ar de mesmice do ambiente. Só.
Em pouco a notícia correrá de língua em língua na fulgurante velocidade da luz. Em alguns corações despertará indisfarçável felicidade, em muitos um forçado estupor e, na maior parte , mera curiosidade. Poucos amigos ,verdadeiramente, se banharão em tristeza: menos por dó e mais pela imperdoável atitude de se haverem queimado algumas estantes da biblioteca de Alexandria daquela geração. A grandiosidade do ato apenas animará as rodas de bar e o jornaleco oral que corre de boca em boca, que é distribuído de língua em língua na fluidez das relações humanas. Algumas lágrimas hão de cair por sobre as flores que comporão futuramente a cena, numa paisagem sul-real e enigmática. É o ritual de passagem para o pó.
Apenas o corpo quebrando temporariamente a unicidade da paisagem do quarto. Do outro lado da janela o mundo corre alheio a tudo. Não sobra tempo para computar as baixas . A Lua nascerá a mesma, o sol ressurgirá com o mesmo brilho e a vida segue indelével sem olhar ao derredor. Apenas a terra ávida abrirá a boca para degustar seu prato preferido : nada. Exatamente a matéria que preenche a superfície do planeta: o vazio, o oco. Aquilo mesmo que o Criador tentou, sem êxito, preencher no primeiro dia da criação. E , exatamente o mesmo que o corpo da sala, feito à divina imagem e semelhança, buscou durante toda a vida, até desistir e voltar àquele lugar de onde nunca saiu , a meio caminho entre a treva e o abismo.
J. Flávio Vieira
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