sábado, 29 de setembro de 2007

ALGO MAIS SOBRE NORMANDO



Um expresso da Viação Caririense. Nas estradas ainda não asfaltadas entre Juazeiro da Bahia e Feira de Santana. Quem migrou para o sul tem no seu corpo este roteiro de viagem. Mais de 12 horas de viagem desde o Crato. Calor, baratas miudinhas nas frestas dos assentos, ônibus cheio, corpos muídos, mentes dispersas entre a saudade e o futuro. Estou em pé, Normando ao meu lado, como um ilusionista a falarmos de vida material e transcendências mágicas. Ele era Rosa Cruz. Normando, com o corpo maneiro pelo biotipo, alto para nossos padrões, magro, pescoço cumprido, cabeça chata, trançava os conceitos mágicos com o movimentos dos dedos finos das grandes mãos.


Falamos de 1974. Eu voltava de umas férias de quinze dias no Crato. Era algo entre janeiro e fevereiro, tempo chuvoso, completava um ano que saíra de Fortaleza para o Rio. Estivera na minha cidade para fazer o retorno que nunca fizera desde que a deixei, às três horas da madrugada (nos primórdios do horário de verão), num trem para a capital. Foi uma noite de fevereiro de 1968, um grupo de adolescentes enxotados em sentido do futuro no tempo e no espaço. Tocávamos violão, tomávamos cachaça sob um pé de Crista de Galo, árvore seminal da minha infância, no quintal da casa da Batateira.


Naquela noite, sem cair nas figuras de linguagem, o filme da minha identidade primeira, passou-me inteiro. Ao meu lado amigos e primos desde os tempos remotos: Fernando Arraes, Joaquim Pinheiro, Nivaldo Teles, José Almino Pinheiro, Aguiar (grande pintor dos nossos cenários de teatro), Moraes (de Campos Salles, briguento por natureza, terminava as festas com olhos roxos) e Almirzinho (Almir Pimentel filho). Desde os tempo remotos.


Tinha sete anos de idade, analfabeto por opção e teimosia, solto nas quebradas do vale do Batateira, escola era presídio e tinha consciência disso. Um dia levaram-me para um grupo escolar, sentaram-me longe da molecada. No dia seguinte, no intervalo entre um dia e outro de aula, aliviei a diarréia nos livros escolares e fui exilado para os campos abertos novamente. Mas o tempo, este senhor da escravidão civilizada, sentou-me num banco do Colégio Diocesano, quatro paredes cortando-me a paisagem, uma cartilha e um caderno com lápis para fazer só o que mandassem.


Mas não há escravidão sem gente. Tendo gente tem vida, tem história e movimento. As prisões, hospitais, santórios e spas são o maior exemplo. Tarcizinho (Tarcísio Leitim, médico pelo interior do Ceará), Pedro Ernesto (filho mais velho de Tomaz Osterne), José Ribeiro (Psiquiatra em São Paulo), Alfredo Leitim, Vanderley e tantos outro recuperamos a vida na escravidão.


Aí pelos idos do segundo ano primário, um drama nordestino. Um drama político. Em Farias Brito a disputa feroz entre PSD e UDN. Um líder do PSD, Enoque Rodrigues foi assasinado a mando dos líderes da UDN. Companheiros e parentes tiveram que fugir para o Amazonas (dois grandes professores da UFC da enfermagem e estatística eram filhos daqueles que migraram a força). A violência política e social é antiga, não chorem apenas pelos de hoje, os de ontem foram terríveis. Promovam os olhos mansos no amanhã.


Enoque morreu deixando a família para criar. E aí, chegaran para estudar os irmãos Elmano e Normando. Tínhamos em conta o drama daquelas crianças como nós, mas deles recebemos um vigor de independência em que o drama de sua família não explicava tudo o que eram. Eram altivos, reagiam à provocação, se colocavam, tinham opinião. Tinham o quê dizer. Elmano foi para o Rio e se dedicou a Propaganda e Marketing, depois indo para Brasília. Normando ficou pelo Rio algum tempo e depois já soube dele de volta ao Cariri. Foi aí que vocês o encontraram. Talvez o motivo pelo qual, os irmãos da trama da vida nordestina, novamente se reencontraram em Bsb.


O encontraram como uma figura mítica que logo se encantou. Mas agora, compreendam o motivo dos blogs Cariricult e Do Crato. É que não temos elfos e outras figuras de prateleiras, temos mitos que só nós mesmos sabemos compreender. Pode até ser a projeção globalizada na nossa grei, mas não deixa de ser antropofagizada.


Sobre outros.

Da lista de pessoas que citei da minha última noite como habitante físico do Crato e de outros que habitam estes blogs, Zé Flávio e Ronaldo Brito, tenho boas coisas a dizer e o direi.

2 comentários:

  1. Abencoada, a tua memória!

    " Promovam os olhos mansos, no amanhã".

    Você fotografa o passado, enquanto conta...Fotografa com os olhos mansos do presente, que ainda ontem era o futuro!

    Ressuscita um tempo que é meu também...traz à luz pessoas e fatos, que eu reconheço muito!

    Existe um retrato do Seu Enoque Rodrigues, pintado por Normando.Uma foto pintura.Um trabalho perfeito!Normando nos dizia , que teria sido a sua primeira arte!

    A arte de lembrar é muito interessante...Estou compreendendo agora! Deixa saudade, mas deixa vivo tudo que me parece imortal!

    ResponderExcluir