quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Até quando?


A Mata do Fundão pegou fogo. Segundo um jornal do Ceará, mais de cinqüenta por cento da pequena reserva florestal virou cinza. Pouca gente que não é do Crato conhece a Mata do Fundão e sabe o que ela significa: um oásis sobrevivendo em meio ao crescimento desordenado da cidade. Maltratada, a pequena floresta não recebia nenhum cuidado dos cidadãos cratenses, nenhuma atenção do proprietário, nem do poder municipal. Foi incendiada na brincadeira, como se risca um palito de fósforo.
Até bem pouco tempo, via-se muitas espécies de macacos pulando nas árvores do Fundão. E passarinhos e animais de pequeno porte. Quando chove, o rio Batateiras ainda corre com suas águas barrentas, formando remansos e cachoeiras no meio da mata. Ele desce a chapada do Araripe, a serra que circunda o cariri cearense e foi transformada na primeira reserva florestal do Brasil. Os romeiros que visitam Juazeiro do Norte, terra do Padre Cícero, se assustam quando avistam o verde da chapada, depois de atravessarem léguas de desertos. É um milagre ameaçado de desaparecer, como a Mata do Fundão.

Dizem que os índios cariris, os antigos habitantes dos lugares onde hoje crescem Juazeiro do Norte, Crato, Barbalha, Missão Velha, Jardim, Brejo Santo e outras cidades do vale, taparam os minadouros das nascentes quando foram expulsos da terra, para que secassem. Se eles fizeram isso, as águas continuaram correndo. Somente nos últimos anos, com o desmatamento das encostas da chapada, o fluxo das centenas de nascentes começou a diminuir. Os mananciais que pareciam inesgotáveis se exaurem. Já não existe água em abundância, descendo pelas encostas. Tardiamente, o sortilégio dos índios cariris funcionou.

A história da pequena Mata do Fundão, incendiada como se fosse um traste inútil e incômodo, é igualzinha à história de milhares de outros incêndios criminosos, que acontecem todos os anos no Brasil. Ela mostra que na prática estamos longe de corresponder às pesquisas que nos apontam como um país preocupado com a preservação do meio ambiente. Educados num modelo de colonização predadora e extrativista, continuamos achando que os bens da terra são inesgotáveis e é possível tirar sempre, sem nada oferecer em troca.

A Mata do Fundão viveu protegida enquanto a população do Crato era pequena. Como a cidade ficava longe dos seus limites, a floresta parecia distante e inacessível; demandava uma viagem para alcançá-la. A proximidade dos centros urbanos tornou as florestas mais frágeis, porque a maioria das pessoas já não considera a natureza sagrada, nem possui conhecimento científico suficiente para lhe atribuir um outro valor e significado. Só é possível se relacionar com o mundo natural que nos cerca, sem prejudicá-lo, através do conhecimento ou do afeto.

Sem uma aura de sagrado a envolvê-la, a floresta é como um produto descartável, desses que se compra em supermercado. Pode-se usar e jogar fora; cortar, pisar e queimar. Pena que não se pode comprar outra, no supermercado mais próximo.




Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Escreveu Faca e Livro dos Homens. Assina coluna na revista Continente.
Do Site : Terra Magazine

Um comentário:

  1. Até criarmos vergonha na cara e, num movimento de cidadania, tornarmo-nos guardiões de nossas vidas, o que corresponde dizer, de nossa aldeia (casa, rua, bairro, cidade etc ad infinitum...

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