Memórias de um sargento de milícias e Macunaíma. O herói sem caráter, ou de um caráter em transformação. Um antropófago voraz. Um antropófago de salões. Na boemia, nas repartições, no gosto popular. A adulação enganosa, que adula para esconder a vontade de chutar. Um gênio que se reconhece e por isso mesmo é vaidoso. Um sujeito, na altura da fama e no sofrimento da pobreza. Morre à míngua e seu enterro é acompanhado por milhares. Seguindo o parágrafo a partir do final.
Na rua Catulo da Paixão Cearense no Engenho de Dentro, Rio de Janeiro, viveu seus últimos anos de vida, num barracão miserável, o próprio Catulo. Chamado por ele de "Palácio Choupanal" ali recebeu Monteiro Lobato, poetas, pintores, políticos, tenores e médicos. Grande papo, molhado com as espumas de cerveja, sempre com a mesa cheia, recebia os amigos com roupas extremadas. Nunca a vestimenta mediana, apenas extremos: pijama ou terno e gravata.
Aos 75 anos de idade, em tremenda necessidade, apela ao cantor paulista Paraguaçu que lhe promova alguns recitais em São Paulo. Sucesso que esgota os seus livros e do interventor Adhemar de Barros recebeu um envelope com 20 contos de réis, muita grana, ao que o espírito adulador agradeceu: Eu sabia que V. Excia não ia deixar por menos. Em 10 de maio de 1946, no pós-guerra e época da constituinte pós-Estado Novo, morre Catulo na miséria.
O enterro do poeta foi um fato incomum na capital. No trajeto a banda de música do Corpo de Bombeiros (escola de grandes músicos) toca a Marcha Fúnebre e atrás da carreta, com o corpo de Catulo, a multidão. No Cemitério do Catumbi as personalidades gastaram o verbo enquanto o sol se punha. Tantas foram as loas que uma imensa lua cheia começou a luzir por sobre o Morro de Santa Teresa. O tenor Alfonso Tirado cantarolou Luar do Sertão e imediatamente um coro de milhares ecoou nos céus dos morros em volta.
Um cearense, relojoeiro e ourives, Amâncio José da Paixão Cearense, foi para o Maranhão e casou-se com Maria Celestina Braga da Paixão. Na hoje rua Oswaldo Cruz, antiga rua Grande, em São Luis do Maranhão, nasceu deste casamento, Catulo da Paixão Cearense. Nome de terra e elogio ao poeta que fincou a poesia lírica em Roma. Mas se o maranhense de nascimento se dizia da paixão cearense, é por que o era. Sua família, quando ele tinha 10 anos, foi para o Ceará e por lá ele rimou terra com luar. Pouca dúvida, é provável que o Ceará tenha dado a Catulo a sua força maior, a força de fazer poesia do jeito que se fala. Por isso, apesar da convivência marota, o poeta não virou a moda da vez, um Parnasiano com sotaque Francês. Também pudera, era um Cearense com coração de várzea, serra, pedras, espinhos e muita fulô de cores exuberantes sobre o cinza da vida burguesa na capital.
Os biógrafos do Catulo brasileiro têm dificuldades de fixar-lhe o ano de nascimento. Tudo motivado por uma sinecura em que o poeta foi empregado numa repartição pública, onde apenas ia no dia do pagamento, e, por isso, tiveram que rejuvenescê-lo três anos, o que antes fora na verdade 1863 virou, na reforma, 1866. Com 17 anos ele veio morar com os pais na rua São Clemente em Botafogo. Logo o poeta, que tocava flauta, entrou numa roda de músicos em Copacabana. Entre eles o mito Anacleto de Medeiros que lhe ensinou violão. Boemia, serestas e caminhadas ao luar. Um dia o pai, aborrecido com o comportamento filho, lhe quebra o violão na cabeça. Mas foi Catulo, com sua atitude Macunaímica, quem desmistificou o violão na elite da Velha República, ao tocar para ela nos salões do palácio do Catete.
Um talento desse, vaidoso e ousado vulcanizava inimigos. Diziam que uma vez ele encontrou um amigo e disse-lhe: "acabo de sair da casa do ministro Rui Barbosa. Recitei o meu Hino às aves e o baiano chorou. Só hoje é que vim a ter certeza de que ele é realmente um gênio". Os inimigos não suportavam isso e diziam que o poeta entrara pela porta dos fundos quando da audiência que dera para o Presidente Nilo Peçanha. Mas o troco veio com oMarechal Hermes da Fonseca quando todos viram o poeta subindo as escadarias do Catete e depois a jovem e encantadora mulher do presidente Nair de Tefé (uma das primeiras feministas do país) comentou: "Essa audição de Catulo, no Palácio do Catete, constituiu o maior sucesso a que um verdadeiro artista poderia aspirar em toda sua vida. Catulo, ao término de cada canção que interpretava, recebia da culta assistência uma ovação delirante. Todos o aplaudiram de pé." Por tal audição recebeu o emprego público na Imprensa Nacional.
Catulo comeu o pão que o diabo amassou no início de sua vida carioca, embora as noites sempre fossem de serestas e mulheres. Autodidata aprendeu Português, Matemática e Francês. Por tal cultura é que consegue sair do cativeiro como estivador do cais do Porto e começa a lecionar para os filhos de famílias ricas. Faz traduções do francês, funda um colégio no bairro da Piedade nos subúrbios do Rio e tem um emprego público. Tem as paixões arrasadoras, ao estilo de Noel Rosa, enquanto este no povaréu da Lapa e assemelhadas, Catulo com filhas de senadores e outras senhoras. A grande paixão da vida dele foi uma de codinome Coleira, expressa em poemas, segundo ele filha de um senador de Goiás.
Catulo funcionário público. Só aparecia no dia do pagamento. Os inimigos foram se queixar com o Presidente e este desfazia a intriga dizendo que o poeta era maluco e atordoava os reclamantes com "mas quem mandou ele ir tanto ao serviço". Acaba a República Velha, revolução de 30 e os novos donos do poder mandam Catulo ir trabalhar, cumprir seus deveres. Ao tentar entrar na sala dos datilógrafos, um porteiro que nunca o vira barrou-lhe a entrada. Catulo retrucou: Sou funcionário desta casa. O porteiro: Funcionário, o senhor? Menos essa. Eu estou aqui há 25 anos e não o conheço. Catulo: Pois saiba que sou. O porteiro: Como se chama o cavalheiro? - Catulo. - De quê? – Da Paixão Cearense. – Da Paixão Cearense? É parente do outro? – Não, senhor, sou...o outro. Ao se aposentar, os proventos foram reduzidos, mas Catulo chiou tanto que Getúlio recuperou-lhe os vencimentos.
Luar do Sertão e sua polêmica. Catulo negava, a letra era sua, mas tudo levava a crer que João Pernambuco recolhera a melodia do folclore nordestino. Quando a música foi gravada e os versos publicados Catulo não citou João e este reclamou. Ficou uma polêmica resolvida judicialmente com direito de João ser citado. Luar do Sertão foi composta com 10 estrofes de rimas emparelhadas. Se hoje queres um programa cultural no Rio poderás assistir a "Um Boêmio no Céu", texto de Catulo, direção de Amir Haddad e com atuação de José Mayer.
Fontes: Jangada Brasil, Cifrantiga - História da MPB e Cifras, A Canção no Tempo ( Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello) - Editora 34.
Fontes: Jangada Brasil, Cifrantiga - História da MPB e Cifras, A Canção no Tempo ( Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello) - Editora 34.
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