segunda-feira, 10 de setembro de 2007
"Incelença" e a Viagem Previsível
Não sabia explicar de onde viera aquela mania que desde criança o acompanhava, com visgo de chiclete. Era certamente uma coisa para ser desvendada por lupa da psicanalista, revolvendo o inconsciente na arqueológica busca do seu passado emotivo. A mais remota imagem que tinha gravada da infância, pensava freqüentemente, já era a do cemitério da cidade, com suas lápides misteriosas, seu silêncio aterrador. Ali ia muitas vezes pegar as borboletas que , atraídas pelas flores vicejantes dos túmulos, viviam a flanar por entre as rosas, como que a ensinar à morte os encantos da vida. Foi tomando gosto e ,aos poucos, a sua tanatofilia passou a tomar corpo. Nos jornais procurava prioritariamente a página dos Falecimentos . Ao despertar, a primeira notícia que escarafunchava com os amigos e vizinhos era , justamente, sobre aqueles que tiveram que fazer a última viagem. Dia sem velório, para ele, era dia chato e sem significado. Enterro, então, não perdia sob nenhuma hipótese e beirava o enfarte, quando coincidiam dois sepultamentos no mesmo horário, o que para ele era uma tremenda falta de funérea organização. Seus comentários , onde quer que estivesse, eram uma verdadeira coluna necrológica, abriu a boca, lá se vinha desgraça! A cidade até já o usava como referência em caso de multidões se deslocando: se ele viesse junto, era com certeza enterro, em caso contrário, podia anotar: tratava-se de procissão. Tamanha afinidade com o último adeus, o foi provendo de habilidades difíceis de serem sobrepassadas. Fez-se um chefe de cerimonial , nestas ocasiões, como poucos. Discorria sobre as diversas qualidades e defeitos de caixões e urnas, como poucos agentes funerários estavam habilitados a fazê-lo. Entendia de coroas, rascunhava lembrancinhas de sétimo dia, escrevia epitáfios e ainda se imiscuía na cozinha do falecido , dando pitacos sobre caldos e cafezinhos. Sem falar nas rezas e benditos em que era expert e que, em falta de padre, poderia tocar a encomendação, sem maiores atropelos. Tinha, também, prontas , algumas crônicas em que exaltava as sempre impressionantes qualidades do morto e que, invariavelmente, veiculava nos meios de comunicação locais, alguns dias após o passamento. Numa delas dizia que havia observado bem o cadáver do indigitado amigo no caixão e notara, claramente, que ele ia rindo daquele monte de abestados ao seu redor, soluçando e gemendo, sem nem imaginar que ele estava era numa boa: sem dívidas, sem preocupações , sem governo e sem cobrador o atanazando. Os momentos mais importantes da sua necrológica vida , ele mesmo já havia divulgado: os dias da morte de Tancredo, de Senna e do Leandro: tudo enterro cinco estrelas!Talvez tenha sido por isso que um dia lhe impingiram o apelido de “ Incelença” , pelo qual -- e somente por ele - era imediatamente identificado, onde quer que estivesse.
Talvez houvesse algo de mórbido na mania de "Incelença", alguns até comentavam que no fundo, ele devia ser um sádico e a dor alheia devia lhe proporcionar um indescritível prazer, algo que beiraria o orgasmo. O certo é que um belo dia nosso amigo passou a apresentar tosse continuada e emagrecimento e terminou tendo que fazer uma Radiografia que levou para o acurado exame médico. O esculápio , com olhar penetrante e frio, observou detalhadamente a chapa e deu a sentença: -- É câncer no pulmão, vamos aguardar o resto dos exames, mas é coisa de poucos meses, seu "Incelença "!
Passado o primeiro impacto, boiou uma estranha alegria na alma do nosso amigo. Em verdade, se pensasse bem, era um felizardo, poderia programar tudo, providenciar enterro de primeira, com todos os requisitos necessários a uma boa viagem derradeira.
Sem especificar o nome do defunto, encomendou e pagou todo o serviço funerário, aviou convite para os colegas mais próximos , acertou antecipadamente com o padre e com os coveiros e até a "Banda de Música" foi contratada para executar o Réquiem" de Mozart, na hora da inumação. Dias depois, foi chamado pelo Hospital e, em lá chegando, recebeu a notícia devastadora: houvera um erro de diagnóstico, os novos exames mostravam que se tratava apenas de uma tuberculose e ,em pouco , poderia volta ao seu esporte preferido: Maratona de Cemitério.
Dias depois, a empregada encontrou o corpo de "Incelença" caído ao lado de um copo de arsênico. Um bilhete ao lado do criado mudo explicava que entrara em profunda depressão , com a última notícia dada por seu médico e que não quis perder a oportunidade máxima que se lhe apresentava em vida. O resto da carta dava detalhados informes sobre o seu velório e enterro, já previamente preparados, e a inscrição que gostaria que fosse gravada no seu epitáfio:
---- Eu só queria ter visto!
J. Flávio Vieira
Isso daria um belo filme. E gostei muito de o "Incelença" ter bom-gosto, e ter contratado a banda de música para tocar o Réquiem de Mozart!
ResponderExcluirEu já pensei em preparar meu funeral também, inclusive estava pensando nisso hoje à noite, antes de chegar em casa e ver essa crônica.
E pensar que a morte vem tragar a cada um de nós, depois do cara ter ralado, estudado coisas difíceis, passar a vida como um animal lendo e aprendendo, chegar ao ápice da sua vida, com todo o conhecimento que lhe é possível, com todas as honras que lhe são cabíveis, e ter que deixar esse mundo...
Seu "Incelença" fez o que lhe era mais lógico. Incrivelmente, ele tomou o rumo mais fácil de evitar que a morte o levasse. Ele "levou" a morte!
Um grande abraço,
Dihelson Mendonça