sábado, 29 de setembro de 2007

Nem tanto a Deus, nem tanto ao Diabo


Na Califórnia não se pode fumar em lugares públicos, isto é mais do que óbvio. Engraçado é ver as pessoas saírem dos bares para fumar no meio da rua, calculando a distância da janela mais próxima com medo de que a fumaça possa alcançá-la. A distância é preconizada e até imaginei que seria mais prático os fumantes andarem com uma fita métrica e medirem os centímetros onde podem saciar o vício. Num país obcecado pelo cumprimento das leis, a perseguição ao tabagismo virou guerra santa. Foi-se o tempo em que os atores de Hollywood apareciam em filmes de gangster envoltos numa nuvem de fumaça. O estilo Humphrey Bogart, no clássico Casablanca, caiu inteiramente de moda.
A última novidade é que os cigarros com filtro são mais danosos do que os que não possuem filtro. A sucção do filtro faz que a fumaça atinja a periferia dos pulmões, provocando doenças mais agressivas. O tabaco, que os nossos índios usavam em festas e rituais de pajelança, está com os dias contados. Dentro de algum tempo, as autoridades da saúde não permitirão nem mesmo o cachimbo da paz, aquele que os apaches pitavam com os caras pálidas, nos faroestes americanos. E é possível que proíbam a personagem Carmem, da ópera de Bizet, fumar na companhia das amigas, quando deixam a tabacaria onde trabalham.
Bem que eu poderia escrever sobre a história do tabaco, do uso ritual que dele faziam os indígenas até os viciados que a indústria capitalista produziu. Mas prefiro deter-me sobre uma questão pertinente ao Brasil. Por que incorporamos uma campanha tipicamente americana e continuamos a fazer vista grossa para um problema mais grave, o do uso do álcool?
Sempre que contraponho os riscos do tabagismo aos do alcoolismo temo parecer alguém em defesa dos fumantes. Não fumo e sei as conseqüências do vício de fumar, os vários tipos de câncer que são causados pelas substâncias naturais ao tabaco ou artificialmente acrescentadas pela indústria.

O tabagismo prejudica apenas o seu usuário ou algum fumante passivo. Não provoca distúrbios psíquicos consideráveis nem é a causa de desagregação familiar como o alcoolismo. Os acidentes de carro que matam milhares de pessoas no Brasil estão quase sempre associados a motoristas embriagados. Nunca ouvi falar de alguém que atropelou um pedestre porque fumava. No entanto, as campanhas contra o tabagismo predominam. E é muito tímido ainda o que fazem contra o álcool. As propagandas de cerveja, cada vez mais sofisticadas e aliciadoras, aumentaram os consumidores, sobretudo entre as mulheres e os jovens.
Alguém pode me explicar a razão dessa hipocrisia? Por que perseguem tanto o fumante e deixam o baderneiro alcoólatra beber em lugares públicos, atropelar impunemente, brigar nos estádios de futebol, bater na mulher e nos filhos e incomodar os vizinhos com o som ligado alto? Tem que ver com a nossa cultura machista? As propagandas de cerveja são apologias ao machismo; nelas, as mulheres aparecem como meros objetos sexuais.
Ninguém vê isso. É mais fácil azucrinar os fumantes, até que não existam no planeta. Desaparecidos não por causa do câncer, mas porque foram convencidos a não fumar.



Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Escreveu Faca e Livro dos Homens. Assina coluna na revista Continente.


Fale com Ronaldo Correia de Brito: ronaldo_correia@terra.com.br

2 comentários:

  1. Pelo tom do autor, esse texto até que poderia ter sido escrito por mim...

    Eu o saúdo!
    É verdade, há tanta hipocrisia. Aonde estão as campanhas contra o alcoolismo?

    Ninguém vê.
    A indústria da cerveja deve dar muito lucro aos cofres públicos. Quanto mais cerveja vendida, mais lucro aos cofres.

    O Brasil não é nem nunca foi um país sério!

    Falow!

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  2. Ronaldo e Dihelson: os efeitos sobre a saúde, os impactos sociais e econômicos do Alcool são graves e independem de qualquer outro meio de dependência química. Não dependem nem do tabagismo, nem do uso das chamadas drogas leves ou pesadas, das drogas lícitas medicadas em escala ou das ilícitas traficadas em toneladas. O consumo de álcool é grave pois também ritualístico tão remoto quanto a bíblia isso do ponto de vista religioso, pois o histórico vai para mais longe do passado. O tabagismo que se origina dos rituais dos ameríndios, tem, nestes, o uso de bebidas eufurientes e algumas produtoras de álcool. Mais sei que vocês falam da produção capitalista, do consumo de massa e do estímulo de marketing. Nisso os dois hábitos foram exaustivamente expandidos pelo cinema, TV e outras mídias.

    Mas não vamos cair na facilidade da queima da campanha anti-tabagística no Brasil por ser de estilo americana. Não vamos, pois foi uma campanha de grande sucesso, revertendo tendência histórica entre jovens, reduzindo a propaganda de massa e ampliando temas sobre educação. É interessante acrescentar que os países do terceiro eram a "bola da vez" da expansão da indústria tabageira e o Brasil reveteu isso.

    O Ministro da Saúde levanta a questão do alcoolismo e o país já tem história para contar. Vamos olhar a necessidade de iniciar imediatamente esta nova luta.

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