Minha infância, depois dos cinco anos, a vivi do terreiro de barro vermelho e amplo da casa em que morávamos, na rua Padre Ibiapina, no bairro Pinto Madeira, em Crato, para a serraria de meu pai e de um irmão de minha mãe, Quinco Monteiro, que ficava logo vizinha. Nessa área em frente da casa, um sobrado de dois pavimentos construído pelo dentista Pergentino Silva na década de 40, empilhavam carradas de toros de cedro cor cinza do barro acumulado nas águas do rio São Francisco, de onde procediam, transportados em caminhão. Daí ficavam utilizando em portas e janelas confeccionadas pelos marceneiros.
Os dois irmãos mais velhos, Everardo e Lydia, freqüentavam a escola no turno da manhã, enquanto eu permanecia em casa, a brincar no terreiro com os meninos da rua, ou vendendo a lenha que sobrava do sarrafo das madeiras para queima nos fogões anteriores aos de gás butano de hoje.
À tarde, seria minha vez de ir ao Grupo Dom Quintino, no mesmo quarteirão, do lado de trás, esquina da rua São Francisco com Monsenhor Esmeraldo.
No intervalo do trabalho, entre onze e uma hora da tarde, alguns dos operários, os que procediam de Juazeiro, preparavam a refeição em uma cozinha improvisada, num dos cantos da serraria. Alimentados, buscavam os lugares mais amenos debaixo dos galpões em que se instalavam as máquinas e os bancos da marcenaria para ouvirem a leitura de folhetos de literatura de cordel que traziam consigo ou compram na feira de Crato.
Reservavam emoções especiais a esses momentos, mistura de mágica com recantos agradáveis de países distantes, aventuras em viagens fantásticas, batalhas de mouros e cristãos, príncipes, princesas, reinados esplendorosos, animais diferentes, bravatas, desafios, sonhos. Eu, a meu turno, terminava rápido o meu almoço já com endereço certo a seguir junto daquela confraria transcendente dos apreciadores atenciosos dos trechos lidos pelos operários.
Acabou sendo esse o meu primeiro contato com a literatura com um todo. Eles denominavam “os versos” aqueles livretos populares, nome genérico destinado a cada um, sem exceção.
O interesse de menino que eu demonstrava pelos folhetos de cordel me habilitavam a recolhê-los ao final quando se completava a leitura e os empregados reiniciavam a faina do dia. Com esses versos formaria bela coleção que guardava na gaveta da mesa das refeições de nossa casa, o lugar mais seguro que encontrara, porquanto sem outra função conhecida e utilizado apenas por mim em ocasiões longe dos olhares das outras pessoas. Ocorria, raras vezes, dos operários pedirem que trouxesse de volta para releitura algum dos volumes, coisa rara, no entanto.
Passadas décadas, ainda lembro do título de vários desses cordéis que conheci na infância: Romance do pavão misterioso, Juvenal e o dragão, A triste partida (que chamavam também de O verso da seca), A chegada de Lampião no Inferno, A peleja de Zé Pretinho com o Cego Aderaldo, Aladim e a lâmpada misteriosa, Proezas de João Grilo, História de Roberto do Diabo, História do valente sertanejo Zé Garcia, O prêmio da inocência, A bela adormecida no bosque, A batalha de Oliveiros e Ferrabrás, A força do amor – Alonso e Marina, O soldado jogador, A vida de Cancão de Fogo e seu testamento, A prisão de Oliveiros, A filha do pescador, dentre os outros depositados nos refolhos da memória.
O mistério que existe nos livros descobri, pois, sua existência nesse tempo, através da literatura de cordel, mundo encantado da tradição popular.
É o grande dilema do homem: se ater ao passado,projetar-se no futuro e deixar de viver o presente(o agora existencial). Outrossim, não teríamos as ternas lembranças de nossa infantilidade se não a tívessémos vivido com grande intensidade. Apreciei as suas memórias.
ResponderExcluirSalatiel, a memória dele é como corpo, mente, cabelos...não envelhecem....rsrs e ainda tem gente que pensa que ele coloca botox (ele sabe o pq dessa referência sobre a toxina). Mas falando sério, Emerson é assim: inteligente e sensível desde criança ! Onde se viu um garotinho apreciar e ler cordéis ?
ResponderExcluirLembrei de mais um dos títulos: Os doze pares de França.
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