quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Desejos


O sujeitinho frio e distante, olhando o mundo por trás de lentes grossas como fundo de garrafa, foi taxativo. Não usou de caminhos tortuosos , enviesados. Num salto chegou ao cerne da questão. Mal disfarçou uma babinha de prazer que parecia escorrer-lhe pelo canto da boca. Com jeitos de carrasco que testa com a polpa do polegar a agudeza do fio da guilhotina, lascou a terrível sentença:
--- É câncer seu Godogredo ! O senhor tem por dentro um caranguejo que lhe está carcomendo rapidamente. Falar em quanto tempo o senhor tem pela frente é mera cogitação. Mas vou ser muito sincero com o senhor: Curta muito bem este verão, seu Godofredo !
Ouviu a pena de morte, sem muita perplexidade. Não que a esperasse. Sempre imaginara que estas fatalidades só acontecem com os outros, com amigos e conhecidos. Não se alongou em perguntas , nem em detalhes técnicos. Já não lhe interessou que meios seriam empregados na execução da penalidade. Saiu à rua e se viu acometido de uma sensação estranhamente prazerosa. Começou a observar o mundo e descobrir matizes e nuances totalmente inusitados. Revelaram-se-lhe o arrulho de amor dos pombos na pracinha; a antes imperceptível floração temporã das bromélias nos canteiros e o movimento quase Browniano dos carros velozes, com seus motoristas de olhos embotados para a vida ao derredor. O céu, no crepúsculo, ganhava tons sanguíneos em degradé , mesmo imprensado em meio às paredes dos espigões. As pessoas apressadas transitavam de olhos absortos em problemas distantes e impalpáveis, como se nada existisse à sua volta. Pareciam os manequins que pendiam das vitrines com seus sorrisos empalhados e imóveis. As quinquilharias que lubricamente se ofereciam por trás das vidraças das lojas de importados lembraram-lhe as guloseimas que o domador oferece aos ursos após cada treinada peripécia no picadeiro. O bar da esquina estava repleto de pessoas de olhar perdido e alegria programada. Percebeu, pela primeira vez, que ali postavam-se muito mais anestesiando com álcool suas dores e frustrações do que erguendo um brinde à grandeza da vida. Angustiou-se com a pequena platéia que existia para a sagrada dramaturgia da existência.

Com o passar dos dias, o planeta começou a brilhar-lhe como jamais um dia acontecera. Deteve-se cuidadosamente nos pequeninos detalhes que se descortinavam há tanto tempo à sua frente. O voejar estático do beija-flor, o polinizador ósculo da abelha, a quaresmal florada do ipê roxo. Sentiu-se prenhe de vida e , como toda gestante, começou a ter desejos insólitos e inabituais. O Doce de Leite de Isabel Virgínia, o Caldo de Mocotó de Bosquim, o Cachorro Quente de Enoque, o Filhós da Praça da Sé, o Quebra-Queixo da Feira, a Tapioca com Fígado de Canena. Sequer conseguia entender como engravidara após a perspectiva do fim. Só com os dias, compreendeu que vida e morte são extremidades que se tocam, o anverso/reverso de uma mesma medalha. E que acalanto é apenas a primeira estrofe da “incelença” que se prenuncia.

J. Flávio Vieira

2 comentários:

  1. A morte nos cumprimenta todos os dias.Mas é como não se acreditássemos nela...Acreditar na morte é por em alerta todos os sentidos, da forma mais intensa possível!
    Até lembrei do Vinícius:"...E a coisa mais divina que há no mundo é viver cada segundo, como nunca mais..."
    Acho que não tenho muitos acertos com ELA.E como disse Neruda:"Confesso que Vivi"...e ainda vivo, magicamente, ao encontro do "Último Pôr-do-sol".(Lembra esse filme?)

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  2. Mas é como se não acreditássemos nela...
    Meu não nunca atrai o sim...é não mesmo!

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