quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Só no Crato Mesmo...


A BARBA DO GATO

O pivete esperava impaciente a vez de cortar o cabelo em desalinho. A Barbearia de cidadezinha do interior estava repleta. Num salto, o guri se aproxima de um barbeirozinho empererecado e pergunta, do alto da pureza dos seus 07 anos:
--- Ei, rapaz, você corta também barba de gato ?
Em meio às gargalhadas da platéia improvisada, o homem da tesoura , sorridente, explicou pacientemente : infelizmente só trabalhava para este bicho que teimava em se autodenominar de racional. Nunca imaginaram os dois que as barbas daquele felino haveriam de tecer uma amizade que perduraria por muitos e muitos anos. Juca Barbeiro acompanhou , a partir daquela data, todas as fases da vida do menino: o cabelo em “lata de sardinha da infância”; o primeiro buço; o meia cabeleira de rapazinho; a cabileirona em feitio de hippie da adolescência e, depois, foi contabilizando a queda inevitável dos fios com o passar dos anos. Foi Juca também quem teve o cuidado de catar, meticulosamente, os primeiros pêlos brancos, na tentativa de remoçar o cliente de tantos e tantos anos. Depois, foi parando ante a inevitabilidade do tempo: já havia mais fios prateados que pretos.
Juca, ultimamente, queixava-se com freqüência dos rumos que vinha tomando sua profissão. Dizia com um indisfarçável orgulho machista que passara mais de 50 anos alisando cara de homem e que nunca tomara gosto pela coisa. Agora , porém, o ofício vinha perdendo sua virilidade, era tanta “frutinha” cortando cabelo, que a coisa degenerara. Freqüentemente gritava em meio ao talco e à pedra ume:
--- Eu sou é barbeiro, não sou cabeleireiro não senhor!
O Salão Chic era o mais procurado da cidade. Todos tomavam nosso barbeiro a pagode.
--- Cadê o gato, Juca ?
Esta pergunta ,algo misteriosa, ecoava , freqüentemente, na barbearia. Diziam as más línguas que embora ele não cortasse barba de gato, morava um bichano sempre no pé da sua cadeira declinável de barbeiro. Afirmavam que o bichinho já estava mal acostumado : de quando em vez, Juca , inadvertidamente, cortava pedaço de orelha, nesga de pele de queixo e de nariz dos clientes e o gato já ficava ali esperando pelo almoço. As perguntas iniciais do nosso artesão, como um tradicional menu da casa, segundo o populacho, eram sempre:
---- Quer com arco, quer cum tarco ou quer que mui ?
Insinuavam ainda que nosso artista usava um estranho kit de instrumentos para exercer suas atividades: uma cuia,um pincel atômico, uma cordinha de couro, um copo com água e cola de borracharia. Cada uma destas peças tinha uma específica serventia: a cordinha era usada para amarrar os beiços do cliente, evitando que ele gritasse com a tortura que se seguiria. A cuia servia para pôr na cabeça e marcar com o pincel atômico a linha exata de corte de cabelo. O copo d’água era dado ao indigitado freguês , no final do serviço, após a tosa da barba, para que bochechasse a fim de que Juca se certificasse se estava vazando ou não. Em caso positivo, o pequeno contratempo era solucionado com a cola e o tampão de borracharia.
Juca aceitava com bom humor as brincadeiras, até porque, o mais das vezes, eram feitas pelos seus mais antigos e tradicionais clientes.O Salão tinha , por outro lado, uma função bem mais ampla do que se propunha. Cidade do interior, ali circulavam as mais quentes notícias da região e a Barbearia era uma espécie de CNN local, uma BarberNews. Ali chegavam as novidades e eram rapidamente amplificadas e finalmente difundidas para toda circunvizinhança. Tinham preferência , claro, o futebol, a corrupção na política e os escândalos e desvios sexuais da pequena vila.
Dia desses o antigo menino da barba do gato estava debruçado na cadeira do Juca. O tempo passara no calendário e já não dava trabalho ao barbeiro : barba rala e cabelo escasso. Como sempre , entre uma tesourada e outra, entre uma e outra deslizada do fio da navalha, Juca ia veiculando as últimas e cabeludas notícias. Versava esta sobre uma adolescente da alta sociedade da vila que começara um tal de “fica- num fica” com um rapazinho carga torta , boêmio e maconheiro e terminara por engravidar.A família até pensara em fazer o casamento assim mesmo, mas descobriu que o pretenso noivo não gostava de mulher e aquilo tinha acontecido numa inexplicável recaída . Juca começava a entrar nos mais sórdidos e escabrosos detalhes do folhetim local, quando, de repente, um tio da mocinha adentrou na Barbearia. Pegou a conversa pelo meio, mas entendeu num átimo do que se tratava. Fitou duramente Juca com uns olhos frios ,montados num bigodão destes parecidos com vassoura de piaçaba. Refestelou-se na cadeira vizinha e ficou esperando o discorrer da história, sem, em nenhum momento, deixar de encara-lo. Nosso repórter improvisado, ante tamanha ameaça, calou e continuou seu trabalho, como se nada tivesse acontecido. Um gozador, peru de Salão, sentado no canto, achou de esporar Juca que tentava ,discretamente, se safar de um momento tão difícil:
--- E aí Juca ? Como foi mesmo o resto da história da menina?
Juca, sem perder a esportiva, tirou facilmente a barba deste gato:
--- Estamos fora do ar , temporariamente, por falta de energia elétrica em nossos transmissores...

J. Flávio Vieira

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