sexta-feira, 7 de dezembro de 2007








As Sete Lágrimas de Apolônio Primavera




O alumbramento de menino poderia ter sido regado a gozo translúcido, naquele dia imóvel de setembro. As trinta ladainhas suspensas no ar, tornavam a supremacia do absurdo um misterioso arremedo, entre o infame e o acólito. A rua Ana Triste, de pequeno trajeto entre o mato e a matriz, ladeadora da praça, única do distrito de Santa Fé, na comarca do Crato, cidade essencialmente voluptuosa, tornou-se uma avenida vertiginosa, quase sem fim.


A idéia foi de Coriolano de Sebasto, hoje homem feito. Disse que a burra ficava já esperando, satisfeita pela atenção dispensada. E foram de um por um e todos com a coragem e as armas de São Jorge de Capadócia, que todos eram crentes. O casarão de taipa, onde se pilava o arroz de toda região, ficava por último, de frente ao muro do cemitério e à direita de quem deixa Santa Fé, em busca do Angico, terra dos Pereiras. O oitão do casarão era marcado por uma calçada alta, onde, de ré, a burra foi colocada, olhando compenetrada para as grotas que se avizinhavam, exprimindo, não sei porquê, soluços átonos.


O primeiro foi Mundico Neto, que se fartou fazendo juras de amor a Lurdinha da Surda, revelando seus desejos pecaminosos e sua sombria gargalhada, jamais esquecida por todos. Depois da muvuca, ficou acertado que o próximo seria Curió, que pequeno demais não alcançou as terras do Ceilão, onde as fontes brotam leite com café e as árvores dão bolacha sete capas, engendradas nas padarias misteriosas de Juazeiro do Norte.


Então Apolônio Primavera foi declarado dono da vez, por vacância e por necessidade comprovada. Calças arriadas, a espada vingadora em punho e a dedicatória secreta estampada no sorriso. Depois de cravada a justiça, que tarda e falha, foi quando a coisa piorou e foi muito.
A burra, insólita, começou sua caminhada lenta para o desalento. Apolônio não queria perder a viagem para o alívio envulvado. Cravou as unhas no couro frouxo que cobria as costelas absortas da burra e dependurou-se na possibilidade indelével das delícias. Ela, a burra incólume, que, sem trocadilhos, pertencia a Zezinho dos Prazeres, - velho tropeiro, negociante de farinha e goma, conhecido por portar sempre, onde quer e com quem esteja, uma varinha de marmeleiro bem descascada, renovada depois de qualquer quebra -, contornou o casarão e dobrou a rua Ana Triste em direção à matriz, exibindo pela primeira vez uma carga deslumbrada, seguida por um cortejo de meninos alumiados pelo aperreio e pela troça.


Eis que o insofismável cortejo deu de cara com outro. Vinha na direção contrária, já chegando no muro da última morada, o féretro de Ariovaldo Filgueira e Silva, o mais notável sacristão de todas as eras daquele arruado. Um misto histórico de moralismo convicto e incontrolável fixação pelo vigor juvenil do mesmo sexo. Além da estranheza de um enterro às doze horas do dia, o choro se dava entre parênteses.
Diante daquela bizarrice em dobro, a burra, que atendia, quando de gosto, pelo epíteto de Mimosa, agora devidamente apresentada, parou rente ao muro, baixou a cabeçorra e se pôs a fustigar restos de embalagens amassadas, capim e segredos domésticos expurgados, defenestrando os últimos resquícios de vergonha de Apolônio Primavera, que escorregava pela porta de trás, entre suspiros e muxoxos, tocando o chão com a esperança de encontrar o Japão. A libido foi cruel com Apolônio: naquele sufoco, quando ele pôs os pés no chão, ele sentiu de forma traiçoeira e retardada, o orgasmo, que subia por toda a sua existência, provocando uma tremedeira em suas pernas que fez escurecer a sua vista, o seu passado e o seu presente, projetando-o de costas por sobre os canteiros de flores que adornavam o muro do cemitério. Daí o seu apelido providencial. Depois de passado o caixão e as imprecações de praticamente toda a Santa Fé, ele se deparou foi com Zezinho dos Prazeres, que vinha na esteira da comitiva, entre os homens de muita ocupação, e que tinha por sua vez mudado de direção para constatar de perto o ocorrido.


Com a habilidade retumbante daqueles que sabem manejar os caprichos animalescos, o tropeiro deu uma palmada desqualificadora nos quartos de Mimosa, espantando o bicho para o rigor da decência. De passagem pelo espanto de Apolônio, ele desferiu uma lapada corretiva no espinhaço do menino, que sentiu a vara de marmeleiro se espalhando nas costas feito formigueiro de saúva. O “cabra safado” proferido doeu mais do que o golpe, que foi bem menos contundente do que a solidão que se avolumava insondável, tomando de conta daquela alma retalhada. Só Deus sabe os dias que se seguiram, cheios de imensidões apertadas. Mas, com os dentes trincados, Apolônio não expôs o seu interior decomposto. Mas isso já foi há muito, na hierarquia das consumações isso é café pequeno, embora inesquecível o quanto desconcertante. O que se sabe é que Apolônio Primavera nunca esqueceu o número de lágrimas que deixou escapar naquele dia: sete ao todo, sem tirar e nem pôr.

Marcos Leonel

2 comentários:

  1. Esse conto é dedicado a José Flávio, dono de uma voz ímpar em nosso cenário literário.
    Abraço
    irmão

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  2. Esse conto pertence ao livro chamado: "Dez contos miseráveis e mais alguns sem nenhuma compaixão". Contos esses que pretendo publicá-los aqui, esporadicamente, até que alguém sinta-se insultado pela falta de decoro.

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