Texto de Rosemberg Cariry
O Mito Fundador
As narrativas míticas indígenas, dispersas em livros, poemas e contos populares, encontram-se fragmentadas e mescladas com narrativas religiosas judaico-cristãs e com as afro-brasileiras. Os mistérios iniciáticos dos mitos originais, como a escultura de um símbolo que tomba, fragmentaram-se em mil pedaços, deixando que se perdessem as chaves dos seus selos. Revisitar essas narrativas e tentar organizá-las em um “corpus” (dar-lhes uma coerência) é tarefa das mais difíceis, só possível através da psicologia profunda e do estudo dos arquétipos.
A narrativa popular, pelo mistério da arte, mergulha nas sombras e revela os arquétipos. Vale a pena enfrentar os perigos de uma jornada através do caleidoscópio de fragmentos míticos e arquetípicos do inconsciente coletivo em busca do mito original. Afirma a tradição que o Cariri era o território mítico de Badzé – o deus do fumo e civilizador do mundo. No princípio era a Trindade: Badzé era o Grande- Pai, Poditã era o filho maior e Warakidzã (senhor do sonho), o filho menor. Os dois irmãos habitavam a constelação de Órion. Badzé enviou Poditã, o seu filho preferido, para a terra Cariri e esse ensinou aos índios a reconhecer os frutos, a caçar animais, a fazer farinha de mandioca, a preparar utensílios de uso cotidiano, a dançar, a cantar e a fazer os rituais de pajelanças. Os índios viviam felizes, mas tinham apenas uma Única-Mulher, a Deusa-Mãe, princípio primevo do cosmo de onde se originaram todas as coisas. Eles desejavam mais... desejavam possuir muitas mulheres que pudessem preparar os alimentos que colhiam e caçavam e que gostassem de se deitar com eles nas redes para afugentar o frio da noite. Para satisfazer os desejos dos Cariri, Poditã orientou-os para que eles, quando fossem catar piolhos na Única-Mulher, ferissem a sua cabeça com um espinho mágico e a matassem. Depois, eles deveriam cortar o corpo da Única-Mulher em tantos pedaços quanto fossem os homens e cada homem deveria envolver o seu pedaço da mulher com capuchos de algodão. Os índios fizeram tudo, conforme as orientações de Poditã, e depois foram para a caça. Quando regressaram, viram admirados que, na aldeia, havia muitas mulheres. Elas alimentavam o fogo e tinham preparado uma grande quantidade de bebidas e comidas. Saciadas a fome e a sede, os índios e as índias sussurucaram em suas redes. Tiveram muitos curumins (crianças) e ficaram felizes, pois a Única-Mulher tinha se transformado na Iara – a Mãe das Águas (o feminino cósmico, inumano), o que assegurava a fertilidade da terra, possibilitando grande abundância de caças e de frutas. Por tudo isso, os índios viviam felizes e agradecidos, dançando e cantando em honra de Poditã. Com ciúmes do irmão, Warakidzã desceu à terra Cariri, transformou as crianças índias em porcos-espinhos (o embrutecimento do espírito, o futuro negado), fazendo com que elas subissem num gigantesco pé de árvore (a árvore do bem e do mal?). Não satisfeito, pediu às formigas azuis para que roessem o tronco da árvore, derrubando-a por terra e deixando as crianças-porco-espinho para sempre encantadas no céu. A terra Cariri ficou um eterno “hoje”, sem amanhã. Depois de muitas tentativas inúteis de por a enorme árvore em pé, impossibilitados de subirem até os céus, os índios disseram a Poditã que estavam muito tristes e que queriam de volta a alegria das suas crianças (o seu futuro). Poditã ensinou então aos pajés que, invocando a proteção de Badzé, fumassem seus cachimbos com ervas mágicas e tomassem o vinho da jurema preta para ter visões proféticas, entrando, assim, em contato com o mundo dos encantados. Contente com a visita dos espíritos dos pajés e com as ofertas de fumo, Badzé castigou Warakidzã, desencantou as crianças-porco-espinho em curumins e as devolveu ao Paraíso da terra Cariri que voltou também a ter um amanhã.
O lago encantado
Os índios Cariri diziam provir de um “lago encantado”, provavelmente do Tocantins ou do Amazonas (ref. Capistrano de Abreu). O factual é que, habitantes do litoral nordestino, os Cariri foram sendo, pouco a pouco, empurrados para os sertões pelos Tupi, seus inimigos, e, posteriormente, pelos invasores europeus. Reza a tradição que eram de uma bravura e ferocidade estupendas, e como símbolo e troféu dos seus feitos épicos se ornamentavam com dentes de tubarão. O mito das águas tinha uma importância fundamental no sistema de crenças dos Cariri. A Deusa-Mãe, o espírito cósmico fecundante (a Única-Mulher), adquiriu, na cosmogonia Cariri, a simbologia da água representada pela Mãe d’Água – serpente sagrada que dorme nas profundezas da terra e guarda os segredos da vida e da morte.
Notícias da Mãe d’Água
Até algumas décadas atrás, a Mãe d’Água ainda habitava as fontes do sopé da Chapada do Araripe. Dona Amélia da Luanda, uma cabocla de 92 anos de idade, que mora próximo à “Nascente Batateiras”, no Crato, conta que na década de 20, seus irmãos chegaram a ver a Mãe d’Água (a Única-Mulher – o feminino inumano) e, por pouco, não morreram. Eles foram hipnotizados e atraídos pela insuportável beleza da Mulher-Serpente que flutuava na superfície das águas. Sua cabeleira de milhões de fios luminosos e verdes se ramificavam pela terra, como raízes. Os gritos da mãe verdadeira (o feminino humano) que, pressentindo o perigo, buscava os filhos na floresta, salvou-os de última hora. Não há quem possa ver, face a face, a Deusa-Mãe sem se dissolver nas suas profundezas. Dona Amélia da Luanda não informa se, depois de tão extraordinária “visão”, seus irmãos ainda ficaram “normais”. Com certeza não, possivelmente ou enlouqueceram ou viraram “iluminados” e saíram, pelos sertões afora, a profetizar os segredos do fim do mundo. A construção da usina hidroelétrica na “Nascente da Batateiras”, em 1939, terminou afastando a Mãe d’Água para as profundezas da terra. Como resquício dessa presença mágica da Mãe d’Água na “Nascente da Batateiras”, Dona Amélia da Luanda ainda aponta outros acontecimentos prodigiosos: em algumas noites, quando a lua está cheia (força feminina da fertilidade), ouvem-se as flautas e os zabumbas dos “caboclinhos” tocando dentro da floresta do Araripe. Esses “caboclinhos” são os curumins desencantados, festejando o regresso ao Paraíso Cariri.
A resistência
Os colonizadores, na sua gana predatória de domínio dos campos agrícolas e de criação de gado, tentaram eliminar as nações tapuia, em todos os sertões do Nordeste, através da catequização e das chamadas “guerras justas”, justificativas cínicas para a rapina, a escravidão e o massacre. A resistência indígena à avassaladora penetração do conquistador branco nos sertões deu-se através do que ficou historicamente conhecido como a Guerra dos Bárbaros ou Confederação dos Cariri que durante 30 anos, de
O Cariri vai virar mar
Os remanescentes das tribos Cariri, alocados na Missão do Miranda, guardaram codificados, na sua sensibilidade, intuição e memória, a evocação da “lagoa encantada” – lugar mítico das suas origens. Para eles todo o vale do Cariri era um mar subterrâneo. Debaixo da terra dormia a Serpente d’Água, cujo imenso caudal era represado pela “Pedra da Batateiras”, ao sopé da chapada do Araripe. Precisamente, onde hoje está situada a Matriz do Crato, erigida sob a invocação de N.S. do Belo Amor, era a cama da baleia ( na simbologia cristã : o peixe que guia a arca nas águas do dilúvio) Os pajés Cariri profetizavam que a “Pedra da Batateiras” iria rolar, todo o vale do Cariri seria inundado e as águas, em fúria, devorariam os homens maus que tinham roubado a terra e escravizado os índios. Quando as águas baixassem, a terra voltaria a ser fértil e livre e os Cariri voltariam para repovoar o “Paraíso”.
Não se sabe em que momento surgiu a lenda da “Pedra da Batateiras”, mas é possível que tenha surgido com o aldeamento dos índios Cariri na Missão do Miranda (1740 – 1750). É certo que, por volta de 1779, na mesma época em que eram despojados mais uma vez das suas terras, por decisão de José César de Meneses, governador de Pernambuco, os caboclos-cariri atribuíam a profecia de que “o Cariri iria virar mar” ao frei Vital Frescarolo, missionário apostólico capuchinho. Em um momento de crise, de dissolução da cultura e do sentido de “comunidade”, os caboclos-cariri buscavam, assim, uma “autoridade” exterior para dar à lenda foros de verdade sagrada e manter a coesão do grupo. Irineu Pinheiro registra que, em 1803, o frei Vital aldeou, nos sertões de Pernambuco, tribos remanescentes da grande Nação Cariri.
Muito feliz em ler esse texto. Parabéns!
ResponderExcluirObrigada pela publicaçào. É muito difícil encontrar textos relacionados a religiosidade Cariri.
ResponderExcluirMuito bom!
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