quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

CARIRI – A Nação das Utopias (parte 4)

Texto de Rosemberg Cariry
(especial para CaririCult)


A “alma santa” do sertão

Em Jaguaribara, a terra bárbara, fecundada pelo mito do herói, virou “chão sagrado”, onde o povo, ainda hoje, paga promessas e reza para “São Tristão”. Tristão Gonçalves de Alencar Araripe – “a alma afoita da revolução”, virou “alma santa” e, compadecida da miséria do povo, faz milagres, curando pequenas mazelas: de engasgo de menino buchudo à espinhela caída de mulher que sofre de mal de amor.

A serpente mordendo a própria cauda

Tão importante quanto esses acontecimentos históricos revolucionários, postos em marcha por setores influentes da sociedade sertaneja, foram os movimentos religiosos populares, surgidos na região do Cariri, na segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX. O povo a seu modo também faz as suas “revoluções” e chega ao futuro pelo retorno à fonte primordial - é a circulatio, “o circuito repetido de todos os aspectos do ser, que aos poucos gera a consciência de um centro transpessoal que unifica os fatos em conflito”(Edward F. Edinger – A Anatomia da Psique). Se foi Badzé que desencantou os “porcos-espinhos” novamente em curumins e deu um futuro aos Cariri, a volta ao passado (o reencontro com Badzé ou com o Grande-Pai) só pode representar a chegada ao futuro. Esses movimentos místicos e messiânicos dos “excluídos do Paraíso” sempre são duplamente sufocados e punidos, quando não passíveis de domesticação pelas classes política e economicamente dominantes. Profundos e contraditórios, esses movimentos ourobóricos (ref. a serpente que morde o próprio rabo – simbologia cósmica) determinaram algumas mudanças na sociedade sertaneja que parecem ser, sob a ótica popular, mais significativas que as “revoluções” burguesas dos iluministas e dos românticos regionais. Desses movimentos religiosos populares, acontecidos na região do Cariri cearense, destacam-se os do padre Cícero, em Juazeiro do Norte e o do beato José Lourenço, no sítio Caldeirão, em Crato.

O sinal de Warakidzã – o senhor dos sonhos

Em 11 de abril de 1872, aos 28 anos de idade, recém ordenado, chegou ao pequeno povoado de Juazeiro do Norte, para rezar missa na capelinha de Nossa Senhora das Dores (a Mãe de Deus), o padre Cícero Romão Batista. Acontecimento providencial, pois pode-se dizer que a cidade de Juazeiro do Norte deve a sua existência a essa visita. A severa moral do sacerdote livrou do crime e da vida desregrada os habitantes do lugarejo, que, em 1875, já tinha 32 casas de taipa, uma escolinha de palha e 2 mil habitantes. Em 1888, ano em que uma terrível seca flagelou os sertões, o padre Cícero teve um sonho que o marcou profundamente e transformaria para sempre a história do povo nordestino. Depois de passar um dia inteiro confessando e consolando camponeses miseráveis, o padre Cícero recolheu-se à pequena escola, onde estava alojado, adormeceu e sonhou que na mesa do professor, disposto como no quadro a “Última Ceia” de Leonardo da Vinci, estavam o Cristo e os doze apóstolos. No sonho, o padre acordava-se, levantava-se e ficava em um canto da sala olhando maravilhado aquela cena. Jesus Se preparava para falar aos apóstolos quando, na sala, irrompeu um bando de camponeses miseráveis e famintos, vindos dos confins dos sertões. Cristo, então, voltou-se para esses pobres homens e falou sobre a ruindade do mundo, prometendo que se os homens se arrependessem dos seus pecados faria uma nova Redenção da humanidade. Percebendo, Cícero em um canto da sala, Cristo voltou-se para ele e, apontando os camponeses flagelados, disse: “E você, Cícero, tome conta deles”. O padre, então: Se acordou na certeza de que o Senhor,/ Lhe botava para ser nesse caminho,/ o padrinho do povo sem padrinho/ e o pastor das ovelhas sem pastor” (fragmento de um poema de Geraldo Amâncio).

A Nova Jerusalém

Cumprindo a profecia anunciada no sonho, o Padre Cícero terminou por fixar residência em Juazeiro onde viveria, em l889, um fato extraordinário que mudaria por completo a história do pequeno povoado. A partir do dia 1°. de março, durante 47 dias, um acontecimento tido como milagroso iria repetir-se e acender uma nova chama messiânica no coração do povo. O Padre Cícero ao dar a comunhão na boca da Beata Maria de Araújo, uma humilde cabocla, descendente de índios e de negros da região, viu a hóstia consagrada transformar-se em sangue. Para o povo dos sertões, da terra marcada por tantas misérias e dores, o filho de Deus se lembrara dos miseráveis e dera um sinal de um novo tempo. A partir desses acontecimentos tidos como extraordinários, o padre Cícero transformou-se em um verdadeiro mensageiro de Deus na terra, a beata Maria de Araújo em uma santa e os deserdados filhos da terra em povo escolhido para a nossa promissão. O chamado “milagre de Juazeiro” nasceu da necessidade coletiva (um ano após a grande seca de 1888 que matou grande parte da população, dizimou os rebanhos de gado e arruinou a economia sertaneja) e tal foi a sua repercussão e a sua força simbólica que chegou a subverter dogmas religiosos, conceitos políticos e estruturas sociais, ocasionando profundas mudanças no destino de milhares de camponeses pobres e sem-terra de todo o Nordeste. Homens e mulheres, miseráveis e sem palavras, fizeram-se profetas e correram mundo anunciando que Deus novamente esteve presente entre os deserdados e, através da hóstia que se transformara em sangue na boca da beata Maria de Araújo, sinalizava a chegada de um novo tempo de fartura e de bem aventuranças. As ovelhas famintas tinham agora o seu pastor, um homem pobre e cheio de compaixão, de nome Cícero, como tantos outros Josés e Severinos.

Começaram assim as romarias para Juazeiro, transformada pela fé em cidadela sagrada: a Nova Jerusalém bíblica, a “Meca” do Nordeste dos peregrinos, a "Terra Sem Mal" de Badzé, o "País de São Saruê" dos trovadores, o lugar de todas as utopias já profetizadas. Não apenas o povo pobre, mas também muitos padres da região chegaram a Juazeiro para render culto às hóstias que se transformavam em sangue na boca da beata. Os dirigentes da Igreja condenavam o movimento religioso popular como subversivo e herético. O padre francês Chevallier, reitor do Seminário da Prainha, em Fortaleza, condenou publicamente o que chamou de embuste e declarou: “Jesus Cristo não vai deixar a França para obrar milagres no Brasil”. Houve forte reação do clero nacionalista que, ao contrário do que dizia o padre Chevallier, afirmava que: “Cristo escolhera o Brasil, a Terra da Santa Cruz, como local onde novamente derramaria o seu sangue e redimiria, pela segunda vez, a humanidade sofredora e pecadora”. Já outros teólogos, mais bem posicionados na hierarquia da Igreja, como negação do milagre, lembravam a condição de Maria de Araújo: cabocla, pobre e analfabeta. Eles perguntavam: como pode Jesus derramar o seu precioso sangue na boca de alguém tão miserável? A subversão estava no óbvio, na previsível opção de Jesus em novamente sacrificar-se pela humanidade derramando o Seu Precioso Sangue na boca de uma pobre camponesa. Essa era a subversão, Jesus não derramara o Seu Preciso Sangue na boca do papa, do bispo, dos padres franceses do Seminário da Prainha, em Fortaleza, ou de algum rico coronel latifundiário da região. Ao contrário, segundo a crença popular, Jesus escolhera a mais pobre entre as pobres mulheres do Cariri para manifestar o seu amor pela humanidade.

O templo-oficina dos filhos da Mãe de Deus

Independentemente das questões teológicas e das querelas políticas, as multidões famintas continuavam a chegar a Juazeiro em busca da redenção e da Terra Prometida. O padre Cícero orientava os milhares de romeiros que chegavam para que as suas casas fossem uma igreja e um oficina. A cidade se transformou, em pouco tempo, no templo-oficina dos filhos da Mãe de Deus. Aconteceu um verdadeiro renascimento das culturas e das artes populares sertanejas, com conseqüências positivas na economia e na vida social da região. Afloraram, na alma coletiva, os arquétipos de todas as heranças espirituais e culturais formadoras do povo caboclo-cariri que, antes disperso, reencontrava agora o seu guia, o seu Pai-Badzé. No caldeirão mágico de Juazeiro, todas as heranças ibéricas, afro-brasileiras, ameríndias e dos povos mestiços do Nordeste entraram em ebulição e geraram uma nova cultura. Em torno do padre Cícero, explodiu um novo mundo de misérias e de maravilhas. A igreja, pressentindo, mais do que uma heresia, a subversão social e o cisma que se processavam, acusou o padre Cícero de querer fundar “uma igreja dentro da igreja”. O bispo Dom Joaquim condenou o que chamava de “pretensos milagres” e ordenou aos padres que acreditavam no “milagre” que rejeitassem as suas crenças e fizessem retratações públicas. O padre Cícero acreditava na origem divina do fenômeno das hóstias que sangravam na boca da beata Maria de Araújo e confessou a sua fé em carta enviada ao bispo. Como conseqüência, no ano de 1892, o padre Cícero teve as suas ordens eclesiásticas suspensas e foi proibido de rezar missas, confessar ou fazer pregações em Juazeiro. Uma onda de revolta e indignação agitou o povo caboclo-cariri.

A sagração universal

Em 1898, o padre Cícero viajou a Roma, por ordem das autoridades eclesiásticas cearenses, para submeter-se e ser julgado pelo Santo Ofício. A viagem do padre Cícero por mundos tão distantes criou asas no imaginário popular. Ao retornar a Juazeiro, padre Cícero foi recebido como um santo que, injustiçado pelo bispo do Ceará, fora redimido pelo Papa e abençoado por Deus. Para o povo, a santidade do padre Cícero deixava de ser regional para transformar-se em um fenômeno universal. A partir de então, o Padre Cícero, eleito no coração do povo como o Santo Patriarca dos Sertões, passaria a exercer uma forte influência política na região, chegando a ser eleito deputado federal e nomeado vice-presidente da Província do Ceará. Com os anos, o seu prestígio popular foi aumentando de forma contínua, até a sua morte, aos 90 anos de idade, no alvorecer do dia 20 de julho do ano de 1934.

Renascendo na morte

Para os que diziam que com sua a morte a fé do povo iria se arrefecer e o Juazeiro entraria em decadência, a realidade mostrou exatamente o contrário. A fama de santidade de padre Cícero cresceu ainda mais com a sua morte e Juazeiro se transformou em uma das mais importantes cidades do Nordeste brasileiro. Para os romeiros da Mãe de Deus”, o “Padim Ciço” nunca morreu, apenas fez uma viagem para o céu, onde foi interceder pelo seu povo, pelos deserdados filhos da terra, foi pedir a Deus para que o “Paraíso-terreal” se desencante. Mas isso só será possível depois das três noites de escuridão e dos três estrondos que vão abalar a “Pedra da Batateiras”, fazendo despertar a serpente das águas no interior da chapada do Araripe. Todo o Cariri será um imenso mar. A baleia, que dorme sob o altar da matriz do Crato, flutuará com a imagem de Nossa Senhora - a Mãe do Belo Amor, no dorso. O padre Cícero resgatará a Mãe do Belo Amor da fúria das águas e a levará para a matriz de Juazeiro, onde Ela reinará ao lado da Mãe de Deus. Em frente à matriz, ficará o porto para entrada e partida de navios de todos os recantos do mundo. Primeiro é o reino da Mãe, depois vem o reino do Pai que, seguido do reino do Filho, preparará o mundo para o reino do Espírito Santo (ref. as heresias de Joaquim de Fiore – século XIII – Calábria).

Enquanto alguns romeiros apontam o “Padim Ciço” como o Filho, outros, como os beatos da Irmandade Aves de Jesus, o tem como o “Espírito Santo”. O certo é que, com a bênção da Deusa-Mãe, o novo mundo, justo e igualitário, será dirigido pelo “Padim Ciço”. Juazeiro será a Nova Jerusalém com suas torres de ouro, suas muralhas de prata e suas pontes de cristal. Todo o pobre será rico, todo o doente será são, todos os humilhados serão exaltados. Quem já leu os evangelhos populares de João de Cristo Rei sabe que:

“Quem dos três estrondos com vida escapar,

Irá se apossar da melhor morada;

As coisas que os ricos deixam em abandono

Ele é quem é dono, não lhe falta nada.

“O sítio encantado que o horto tem

Se verá também com frutas maduras,

Nesse tempo as pedras se transformam em pão

Para a remissão das gentes futuras”.

Juazeiro é o espaço onde o tempo perdeu as paredes das ilusões que separam passado-presente-futuro. Os profetas populares compreenderam que o universo é um cobra mordendo o próprio rabo. Pelas ruas, os beatos Aves de Jesus semeiam a roça da Mãe de Deus com as mesmas orações e palavras que Antônio Conselheiro reinventou a tragédia nos sertões. Na casa de mãe Dodô, os índios Pankararu de Pernambuco agitam os seus maracás mágicos pedindo pela fertilidade da terra. Os peregrinos de Pedro Velho, vindos de Santa Brígida, como sufis, dançam a leveza de São Gonçalo, o santo que nas ruas de Lisboa salvava as prostitutas tocando viola e cantando canções de amor. Antônio Gomes – o profeta cuja missão foi anunciada em sonhos, vestido de São João Batista, puxa pelas ruas uma pequena réplica da barca de Noé e anuncia o próximo dilúvio. Na sua tapera, o cego e rabequeiro Zé Oliveira invoca os “caboclo de flecha” para curar as mazelas e as misérias do mundo. Na Santa Missa, na igreja matriz do Juazeiro, os romeiros comungam o corpo transubstanciado de Cristo (o Deus sacrificado) com a mesma sacralidade e devoção com que os índios Cariri devoravam os seus mortos mágicos, para não mais sentirem “nem saudades e nem tristezas”. Juazeiro é um rio que flui das profundidades da alma coletiva, um mundo que se inventa a si mesmo. Não importa que novas lendas surjam a cada dia e que antigos mitos, indígenas, afro-brasileiros e bíblicos sejam sempre recriados – tudo gira em torno do padre Cícero. Se, em vida, ele já era o “Padim”, ao morrer, livrou-se das suas contradições históricas e das limitações humanas e passou a habitar o território do mítico e do sagrado no coração do povo. É inútil buscar, nas ações históricas e contraditórias do padre Cícero homem, todas as motivações para a fé do povo. O mito do “Padim Ciço” tomou o lugar do homem concreto e histórico. O “Padim Ciço”, chame-se Javé, Badzé ou Oxalá, é sempre o mito, o herói civilizador. É padre Ibiapina, é Conselheiro, é Frei Damião, é caboclo “baixado” em ritual de pajelança, é preto velho em terreiro de macumba. O “Padim Ciço” é o Santo do mundo inteiro e, além de Santo, é o Espírito. O “Padim Ciço” é água caririzeira que brota do mar do inconsciente coletivo e universal para desaguar e fertilizar as securas dos sertões. A alma do povo é o leito onde essa água ancestral adquire a sua forma de rio que une as margens dos contrários e integra as forças fecundantes do masculino (o Pai) com as forças criadoras do feminino (a Deusa-Mãe).

Uma história sem ter fim

O túmulo do Padre Cícero, na igreja de Nossa Senhora do Socorro, é “chão sagrado” - inesgotável fonte de energia mágica. Ainda hoje, embora um pouco decepcionado com o ano 2.000, o povo da Mãe de Deus espera pelo final dos tempos, pelo grande dilúvio da “Pedra da Batateiras” que irá desencantar a Nova Jerusalém. Em Juazeiro, as pedras se transformarão em pão e, nos rios, correrão o leite e o mel. Enquanto o “Paraíso” não se desencanta e o sonho da Nova Jerusalém não se realiza, o povo resiste e encontra, na sua própria história e cultura (em construção), as formas de luta e da necessária resistência. A cultura cabocla-cariri não é a cultura da miséria, é antes a cultura que à miséria resiste e que afirma a vida no ritual da beleza possível. Em Juazeiro, o sonho (império de Warakidzã) não acabou e a história não tem fim. Em Juazeiro, a utopia ainda é uma força que transforma corações e mentes. É o reinventar, a partir das religiões caboclas, afro-brasileiras e do catolicismo popular ibérico, uma nova religião. O vulcão parece extinto, mas não está. A “heresia” real é apenas uma ilusão, pois a “subversão” da religião oficial se dá em silêncio e se processa nas profundezas da alma. O povo, reprimido e massacrado em Monte Rodeador, Canudos, Juazeiro, Caldeirão, Pau de Colher... já sabe o quanto dói a repressão e sempre encontra as formas mais eficazes de proteger os seus segredos e cultuar seus deuses.

Nenhum comentário:

Postar um comentário