quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Falares dos Cariris pela Voz da Catequese


Entender os Cariris tal e qual eram, não é uma tarefa fácil. Hoje para compreender os povos ameríndios ativos e que viveram isolados até o momento do contato, precisa-se de uma série de estudos antropológicos de grande envergadura. Então, imaginemos a dificuldade de entender de trezentos a duzentos e cinqüentas anos após uma cultura que foi profundamente modificada pela presença da civilização européia. Para demonstrar a dificuldade darei alguns exemplos do impacto da catequese sobre o que era próprio dos Cariris e por ela passou a ser interditado ou proibido. Depois, noutra postagem, apresentarei uma síntese de como este pensamento chegou ao século XX entre remanescentes dos Cariris na Bahia.

Antes uma nota. O que apresentarei é uma alternativa de conhecimento ao telúrico caminho de um vulcão que explodiria hoje em nossas vidas vindas do centro da terra mágica dos Cariris. Na verdade o mais importante, talvez, seja compreender a dificuldade desta espécie de teogonia de nossa cultura e contextualizá-la na própria estrutura agrária nordestina, posterior aos Cariris. Seja considerar a estrutura do comércio mundial de mercadorias especialmente nos séculos XVIII e XIX como foi o caso do algodão. Há um interessante livro do Ralph Della Cava dando conta do papel que teve a avidez da revolução industrial inglesa por algodão, sua repercussão no nordeste brasileiro e no fenômeno do Padre Cícero.

Os trabalhos importantes como de Baptista Siqueira, Os Cariris do Nordeste, embora tenham um valor em si, ainda carecem de elementos importantes para o desvelamento destes povos. Existem tantas dúvidas, alguns avanços posteriores ao que foi publicado na primeira metade do século XX, que nem mesmo pelo fato de haver uma gramática escrita sobre a língua daquele povo, o seu verdadeiro modo de ser pode se identificar. Tudo se encontra sob a regência do modo de pensar e dos objetivos dos europeus. Na Arte da Gramática da Língua Brazílica da Nação Kiriri do Padre Luiz Vincencio Mamiani existem frase cujos exemplos revelam isso. Para dar exemplo da aplicação de uma determinada regra gramatical ele escreveu uma frase assim: moré sité carai do hipadzú. A frase em sentido geral seria: logo vem o branco teu amo, mas acontece que padzú quer dizer pai e, portanto, embora seja uma gramática para brancos e não para índios já há uma intenção sobre a mesma.

Ao se comparar frases em português e cariri no Catecismo, também escrito por Mamiani os exemplos demonstram que além da doutrina cristã, há a necessidade de se modificar o modo histórico da cultura destes povos. A respeito, um livro organizado pelo professor Robin M. Wright da UNICAMP, intitulado Transformando os Deuses – Os múltiplos sentidos da conversão entre os povos indígenas no Brasil, demonstra o grande impacto atual das religiões cristãs, especialmente de igrejas evangélicas americanas sobre a cultura destes povos na Amazônia atual. O fundo de todo estes trabalhos a conquista de povos por outros povos.

Voltando ao catecismo de Mamiani. Tudo indica que na cultura Cariri havia uma ligação entre a fonte das necessidades humanas e eles mesmos pela cadeia de parentesco mediada por entidades sobrenaturais. E esta ligação seria expressa pela partícula DZ e assim as palavras dzu (água), ebadzu (fonte) e em seguida padzu (pai), badzé (entidade mediadora do fumo, dos animais e das plantações). Esta ligação é desfeita para que pelo uso das mesmas palavras se encontre outra estrutura antropológica culturalmente européia.

Vejamos como seriam os mandamentos: : Dez yé suwaridzá Tupã wachánidikyé bó cucanghitéa ió Tupã; sete hohóde bó cucanghitéá só Ketcãhó(Os Mandamentos da Lei de Deus são dez: os três primeiros pertencem à honra de Deus e os outros sete ao proveito do próximo. 1 – Acá do bihé Tupãdi. (O primeiro: Amarás a um só Deus.) 2 – Peretówonghékié idzé Tupã enádi. (O segundo: Não nomearás o seu Santo nome em vão.) 3 – Enatékié mó Tupã buyédi.(O terceiro: Guardarás os Domingos e as festas.) 4 – Acá dó epadzú dó edé nódehédi (O quarto: Honrarás a teu pai e a tua mãe.) 5 – Pákiéá enádi. (O quinto: Não matarás). 6 – Ebytókiédí. (O sexto: Não fornicarás) 7 – Ecotókiédí. (O sétimo: Não furtarás). 8 – Emepedíkiédí (O oitavo: Não levantarás falso testemunho.) 9 – Eneyétákié fó idéinũádí. (O nono: Não desejarás a mulher de teu próximo). 10 – Eneyétákié fó iwanheréadí (O décimo: Naõ cobiçarás as cousas alheias). Benhérócríbar yé suwaridzá Tupã mó ró wacháni. 1. sucáwidó dó Tupã bó hohóeribae. 2. Sucá dodetçãhó mó sucá didóhó (Estes dez Mandamentos se encerram em dois, convém a saber: Amar a Deus sobre todas as coisas, e a seu próximo com a si mesmo.)

Agora como seria esta tradução ao pé da letra? Dez grandes falas saem da boca Tupã, três que são coisa boa do espírito de Tupã; sete que são coisa boa para proveito próprio. 1. Tu amarás um só Tupã. 2. Não chamarás demente o nome de Tupã. 3. Não farás por Tupã fogo do inferno. 4. Tu amarás teu pai e não desagradar-se-á da tua mãe. 5. Não matarás. 6. Tu não farás sexo com os moços. 7. Tu não furtarás. 8. Tu não levantarás falso testemunho. 9. Tu não desejarás a mulher dele. 10. Tu não desejarás as coisas dele. Se explica direito as grandes falas que saem da boca de Tupã em duas: 1. Amarás mais que tudo a este Tupã. 2. Amarás o próximo e amarás a si próprio.

Aqui as coisas saem do discurso de Deus (vejam que é Tupã uma entidade Tupi) através do catecismo dos padres. A doutrina mosaica se expressa naturalmente, mas logo no terceiro mandamento vem a interdição de um provável rito com fogo e o sexo se dirigindo a um determinada faixa de idade ao invés do ato em si como na regra geral. Outro dado é que nesta língua não existem os verbos ser, ter e estar e, portanto, a idéia de posse poderia ser bem distinta da prática comercial que vem por trás do não furtarás do catecismo. É provável que os pertences dos cariris fossem muito mais extensões de si mesmo do que um objeto de troca e menos ainda de manufatura para venda.


Desse modo a idéia de pertencer a um mundo mágico original é muito pouco improvável, o que sabemos e mentalizamos é o domínio de uma cultura por outra e sob este pesado manto um inconsciente mundo ainda impossível de ao menos se colocar no coletivo de Carl Gustav Jung. Claro que, salvo engano, por uma crença de que isso exista independente de qualquer dado empírico específico.

4 comentários:

  1. Os Índios Cariris e Carl Jung

    Amigo Zé do Vale,

    O texto é bastante revelador, quando abrange diversas linhas de pensamento, perscrutando sob um ponto de vista histórico da linguagem, dos costumes, antropológico, e percebi nele um veio muito interessante em que posso dar meus dois cents de contribuição, o aspecto linguístico e o aspecto psicológico/simbólico da linguagem religiosa dos índios Cariris.

    É inegável a influência judaica/cristã na vida cotidiana, nos costumes e tradições dos índios Brasileiros. Com o processo de colonização, houve uma perda da identidade original, e muitos passaram a adotar os costumes e tradições devido à influencia dos colonizadores, tal como em qualquer sociedade que foi subjugada.

    Entretanto, por mais deturpação que a cultura européia e a Sancta Madre Igreja Católica e seus perversos meios proselitistas puderam trazer aos nativos, muitos deles ainda podem ser estudados em sua forma mais ou menos original, a exemplo dos povos dos Andes, os Incas, que mantêm ainda em sua descendência inúmeros aspectos da cultura original, e os Maias, diferenciando-se apenas no fator de desenvolvimento que cada civilização atingiu no seu ápice.

    Obviamente, o povo Maia, os Astecas e os Incas foram muito além do que os índios cariris no aspecto "civilização tecnológica e social", mas todos eles, via de regra, descendem do homem mais primitivo no specto religioso.

    O Homem primitivo, no seu total desconhecimento da ciência moderna, atribuía os sentimentos religiosos à revelação direta ou por algum eleito especial ( oráculos, profestas ), renovada de tempos em tempos por mistérios inexplicáveis e por conseguinte, mantidos pela oralidade e incorporando-se ao conjunto das suas tradições. A necessidade instintiva de apoio por parte de algum ser superior, revelava seu desamparo, o que os levou ao temor supersticioso clássico dos indígenas e característico dos povos primitivos da antiguidade.

    Levou-os também a invocar de forma coletiva a sua ajuda para reduzir as calamidades naturais que os atormentavam, e a oferecerem-se sacrifícios para aplacar a ira dos deuses, atribuindo-os a um descontentamento da parte "divina". O sol lhes infundia ânimo, e sua ausência lhes trazia pavor.

    A necessidade de parentesco atribuído no texto dos índios Cariris às forças sobrenaturais comprova de fato, esta teoria. A de que o homem, ainda que em seu estado mais natural e sem qualquer convívio com a sociedade moderna, possui na religosidade, a explicação do universo, sem o auxílo do conhecimento, e valendo-se de símbolos enxertados na cultura ancestral, foi criando uma linguagem coletiva própria, e cada vez renovada pelas camadas do tempo, através da tradição religiosa.

    É Nessa conjuntura, que se valeu tão nobre cientista da modernidade, afeito à linguagem dos símbolos oníricos, Carl Gustav Jung, um dos maiores pensadores de todos os tempos, que sustentava a teoria de que a consciência individual é produto do inconsciente coletivo da humanidade, e traz consigo sua própria porção inconsciente, que com seus conteúdos escondidos da luz da consciência, influencia o comportamento do indivíduo. Nos recônditos da psique, o inconsciente está sempre atuando e faz com que os sonhos, em sua linguagem simbólica, sejam a representação fiel dos processos psíquicos ( chamado de via régia da psicanálise segundo freud ), e que nosso apego à racionalidade é que nos afastou da linguagem dos símbolos e não mais a entendemos.

    Talvez, na sua aparente "ignorância" coletiva, os primitivos índios Cariris se aproximassem mais da idealização de Jung e da compreensão dos símbolos ancestrais verdadeiros, que segundo ele, formava a linguagem mais sublime e harmoniosa de todas.

    Abraços,

    Dihelson Mendonça

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  2. Dihelson: quando citei Jung não foi pela sua teoria em si. Apenas quis concluir que mais existe um desejo de nos encontrar com a alma Cariri do que uma verdade empírica de onde este mundo se encontra. Para não transparecer uma outra impressão do que disse. Não se trata propriamente de uma crítica à religiosidade de todos os povos, tão somente de revelar como as culturas dominantes se expandem e dominam, inclusive por estes componentes que podem ser universais. Acontece que existem outros indícios e estudos antropolóticos com os índios brasileiros atuais, que revelam como a cultura predominante no país soterra a existente, desfazendo fluxo de compreensão do mundo (veja que no texto ponho em hipótese uma fonte, a pessoa, a família numa mesma linha e entre elas forças mediadoras que dificilmente têm os mesmos sinais antropológicos da religiosidade judaico-cristã). Enfim, quando tentamos, hoje, nos aproximar dos Cariris já não os encontramos como eram no seu ambiente americano natural, claro que interagindo com os Tupis Guaranis e outros povos dispersos do nordeste. Como sabemos nenhum povo foi só ele no mundo, pouco sei do aborígenes da Austrália e Moaris da Nova Zelândia, mas não é improvável que tenham várias línguas ou pelo menos dialetos e culturas distintas. Por falar nisso há uma referência de um outro catecismo escrito num dialeto distinto dos Cariris (como já citei em texto anterior) mas pela apreciação que vi as mudanças lingúisticas são muito pequenas. Como dizes é lógico que existam sinais originais, inclusive documental, o problema é que Jung não desenvolveu cânones para este tipo de análise de modo a desterra o que se encontra subterrâneo. Mas fiquemos, como muitos pensam, com a hipótese que seja possível e mãos à obra.

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  3. Caro Zé do Vale, excelente o seu texto. Quero també contribuir um pouco com a discussão sobre tão importante tema: os povos indígenas.

    Primeiro lembro que o termo índio não existia entre os diversos povos das Américas. Na realidade, o termo foi um equívoco de Cristovão Colombo, pois ao chegar às ilhas caribenhas, ele pensou ter chegado ao Oriente e as Índias, e entao passou a chamar os habitantes do lugar de índios. O termo logo foi generalizado para todos os habitantes do imenso continente americano(nome dado mais tarde em homenagem a Américo Vespúcio, que confirmou que as novas terras constituíam um novo continente).

    Em segundo lugar, como é de conhecimento de todos, o contato com os colonizadores europeus foi extremamente violento. Muitos povos foram totalmente destruídos, cultural e fisicamente. Os que sobreviveram passaram por um processo de etnocídio, ou seja, de destruição cultural. Neste processo o papel dos missionários religiosos foi fundamental(por isso costuma-se dizer que a colonização trazia numa mão uma espada, na outra mão uma cruz). No entanto, por mais que os colonizadores tentassem destruir a cultura desses povos, eles não atingiram plenamente seus objetivos. Os povos sobreviventes mantêm, com mudanças, suas culturas. Agora, a presença da cultura dos "povos indigenas" está presente também no nosso dia-a-dia. Dormimos de rede, andamos descalços, tomamos vários banhos por dia, comemos beiju, tapiocas, bolo de milho, etc. Nossos lugares têm nomes indígenas: Cariri, Icó, Jaguaribe, Canindé, Baturité, Itapipoca, etc. Nossa religiosidade é profundamente marcada pela religiosidade indígena(sem falar na influência africana). Nossa musicalidade também.

    Nesse sentido, vivemos e respiramos cotidianamete a cultura dos nossos primeiros ancetrais. Estamos impregnados pelas culturas cariri, tupi, tupinanbá, etc. Creio que não devemos ter o objetivo de encontrar essas culturas como existiam antes. Mesmo porque as culturas são dinâmicas. Elas estão em constante processo de mudanças.

    Nossa alma, nosso jeito, nosso espírito, nosso corpo carregam essas culturas ancestrais.

    Abraços amigos. Esse debate é muito bom e necessário para comprendermos o nosso presente.

    Parabéns ao Zé do Vale pelo excelente texto.

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  4. Grande postagem Zé do Vale. Uma colocaçção muito interessante sobre a estruturação do nosso passado. A respeito da teoria dos arquétipos de Jung, o nosso amigo Océlio, traçou com exatidão esse eterno retorno das relações culturais, embora existe sempre a intenção de uma se sobrepor a outra. Realmente a cultura dominante nunca consegue dizimar por completo a subalterna, destarte a gleba de atrocidades hediondas em nome disso e daquilo outro. Vale ressaltar, que a partir de atitudes como essa, de expor em debate aspectos transversais da nossa história, o dinamismo das culturas continuam. O legado que devemos deixar é exatamente esse: lançarmos olhares de compreensão, não no sentido de finitude, mas no de amplificação. Vejo a multiplicação de significados a partir dos comentários de Dihelson e Océlio, o que é muito construtivo para uma convivência saudável com a nossa consciência, enquanto atuantes em nossa sociedade.
    Grande postagem!
    Um abraço
    irmão

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