Há um caroço de milho na calçada. É visto e amarelo. Perdido na malha das pedras portuguesas, brancas e pretas, e Carlos o viu. Quem na Rua da Glória segue, uma multidão de gente, comércio, ambulantes, sebos nas calçadas, papéis e chicletes agarrados ao piso. E percebe um caroço de milho, tem em mente aquilo que está por trás da semente. Tem a perspectiva do milharal, da fantástica explosão de eventos que aquele simples caroço contém. Entre gente, desviando-se, interrompendo-se na caminhada, uma banca de camelô, coisas espalhadas pelo chão, uma esquina suja, prédios decadentes, mendigos, a maré humana das cidades. Carlos subiu a escadaria do Metrô da Glória contrariado. Havia se enganado de estação, ao invés da Cinelândia, por descuido do mergulho na leitura da Play Boy, descera na Glória. Para não gastar mais uma passagem, subiu a escadaria e marchou no rumo do Passeio Público.
Quem de um caroço de milho enxerga a árvore inteira, logo se apercebeu. A uns duzentos metros, o sol dourava os cabelos de uma jovem alta, magra, calças jeans salientando a bunda de tulipa. Na mesma direção que ele, cruzava a esquina e começava a entrar na rua da Lapa pela calçada da direita. A estreiteza da calçada funcionava como uma passarela de modelos, a barriga esguia, o talhe elegante, os cabelos ondulando ao andar, havia tantos eventos prestes a acontecer no corpo daquela mulher e Carlos, da distância em que vinha, estava com as batidas do coração a mil. Não adivinhava, o doce balançar da cintura multiplicava realizações no rapaz, ele e sua timidez, a pouca beleza, espinhas, barba rala, cabelos longos e desgrenhados. Nem as tradicionais medidas de defesa funcionaram no ar que o Carlos respirava como se quisesse toda a atmosfera de um só ato. A timidez, uma das suas defesas, media-lhe os passos apressados em destino do corpo que azougava todos os olhares, mesmo que de outras mulheres, na velha e puta rua da Lapa. Um sonhador por resguardo, não queria sofrer as decepções que o estado permanente da beleza parca lhe ofertava. Mas Carlos era outro, como um carro de polícia em perseguição de algo, assoviava um samba de Zeca Pagodinho, entrecortado pela pressa de ter cada vez mais perto de si os cabelos de ouro, longos, finos, brilhosos, tramas de uma malha de pescá-lo.
As falhas das pedras da calçada, dobrando os pés, pisando alguma poça de água, dejetos de cachorro, mas Carlos deslizava sobre um tapete de rosas. Deslizava pela trilha dos desejos, dos lábios úmidos, das partes que se juntam para sugar e nos extrair o sêmen das florestas, a multidão do potencial guarda um ao encontro de outro. Nem as tabelas dos botequins, os pratos do dia, as promoções, o vai e vem dos comensais, formavam quadro interrupto para os passos de Carlos na rua da Lapa em trajeto da mais linda traseira que jamais vira, em coreografia andante a menos de cinqüenta metros, cinqüenta metros menos um de cada dois passos de poucos segundos. Menos um e mais uma fantasia nas alças da blusa de tecido fino, branco como nuvens, modulante como elas, espáduas que prometem asas de andorinhas, da qual emerge reto, absolutamente simétrico, largo na base, cinturado ao meio e abrindo-se ao final, depois de carregar de baixo a cima, um canal colunar estreito pelo qual sobem os melados hormonais de Carlos, pescoço de paixão. Os olhos não poderiam se desviar da nuca, os cabelos eventualmente levantados pelo vento que vinha da Glória, uma ou no máximo duas vezes, deram o senso de eternidade para Carlos que vira a depressão do occipício. Sabia que era neste ponto que os odores das mulheres prometem multiplicidade e desideratum. Nada mais havia, esquecera-se de toda a riqueza que transita pela rua da Lapa, era ele um todo concentrado em si para daí se projetar na moça. Na verdade nem era mais ele, era apenas uma seta em sentido do corpo balançante que enfeitiçava o ar à sua frente em menos de vinte metros.
A igreja da Lapa, de uma só torre, não existia, a moça por ali passava, mas os monumentos históricos nada são que passado, passeio, ido, foi-se. Carlos era aqui e agora, feito um foco de luz, como o cogumelo de uma bomba atômica. Por duas vezes vira uma fugaz silhueta de um rosto lindo que não precisava ver, o traduzia pelo corpo que se manifestava e pela face sorridente e fixamente prolongada dos passantes que vinham em direção dele e assim ficavam tão logo cruzaram aquela Diana que nascia bem ali no meio da Lapa. Por muito que a negativa lhe roubasse coragem antes do fato, Carlos era pura resolução. Jamais se sentira assim, como se o desejo dele já tivesse antenado no dela, como se cada movimento de corpo fosse um linguajar de uma língua que só ele entendia e para ele falava. O mais impressionante da visão dela era que à proporção da redução das distâncias entre os dois, mais a acuidade valorizava suas curvas, seus brilhos, seus movimentos. O sinal de trânsito ficou verde e como um chamariz a moça atravessou e chegou na calçada do Passeio Público. Para felicidade de Carlos que já vinha tão perto, ela parou rapidamente próximo a uma banca de jornal, de relance prestou atenção em alguma manchete mas logo continuou o passo. Na ocasião a sua bolsa caíra, Carlos já estava bem ao lado dela.
Nunca Deus lhe dera tamanha oportunidade. Ela parou para abaixar-se em busca da bolsa. Para Carlos foi como se dissesse, agora começamos a nos entender. Ele se adiantou e se abaixou lentamente para eternizar o momento. Com precaução, tanto para não precipitar equívocos, como para não desvelar sua própria escassez de beleza. Lá com as mãos já envolvendo a alça da bolsa dela, pelo canto dos olhos viu o mais lindo rosto que nem aquele corpo de promessas havia prometido igual. Quase se desfalecendo foi subindo de andar como que por estágios. Primeiro os olhos verdes, depois os lábios carnudos e lacustre, em seguida um queixo de carinhos, acima uma testa de luz em arco perfeito a razão dos cabelos que se repartem de cada lado. Ela lhe sorriu, desmanchando a distância que os separava. Carlos afinal chegou-lhe à altura, ao todo do momento realizado, era simpática, não se furtava de flertar com ele mesmo depois que a bolsa lhe havia sido devolvido. Mas em Carlos há o interrupto.
Um cheiro de merda. Penetrante, dominante, envolvente. Carlos estava num fog de fossa, um asco que lhe derretia o ímpeto por aquela beleza única. Mas agora no centro excremental dos acontecimentos, que aquela mulher degenerava-se. De súbito uma palidez tomou conta de Carlos, os ombros se abaixaram, os braços se arriaram, a vontade e o desejo se foram. Aquilo que fora uma explosão sexual, afinal se reduzira, apagara-se sem a placidez da pós-ejaculação. Carlos definitivamente se desinteressava pela mulher, que percebendo sua decepção, logo tratou de seguir adiante pela calçada perdida.
O impacto fora tamanho que Carlos ficou parado olhando-a mudar de calçada em frente à Loja Americana, a antiga Mesbla e desaparecer entre as barracas de Camelô. Desaparecera para sempre. Mas o fedor de merda, não. Carlos tomou um susto, pois era natural que tivesse desaparecido com ela. Mas no entanto, algum tempo depois continuava tão vivo e presente quanto parecera em razão dela. Numa dúvida de perda fatal, Carlos se dirigiu para um fiscal do ponto de ônibus que ficava à frente e perguntou:
- Que cheiro de merda é esse?
- O quê? Cheiro?
- Sim esta coisa que cheira mal e que não se acaba.
- Cheira mal?
- Sim! Este fedor de merda.
- Ah! É esta planta. O abricó de macaco. Fede prá dedeu.
- É!?
Carlos terminou a pronúncia do "é" com a voz quase se apagando. Olhou de volta ao destino da mulher e teve vontade de sair correndo feito maluco ao encontro de coisa alguma.
"Sair correndo ao encontro de alguma coisa..."
ResponderExcluirou esperar cansada,
que essa coisa chegue?
Sair pulando buracos e pedras...
até cair, exausta,
num verso que apaixona!
Vivo espalhada
em tantos ais...
aprendendo uaus...
cadelando um verso
roendo a rima
farejando sempre
o que você escreve!