sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

O CARIRI QUE VIVE EM NÓS


Em texto anterior pretendi, de modo resumido, demonstrar o impacto da catequese sobre a cultura dos povos ameríndios. Mais ainda realçar a idéia que os cariris passaram por enormes transformações desde que foram contatados e "convencidos" a se aldearem sob a supervisão de missionários de ordens européias. O que mais pretendia, então, era passar a idéia que a compreensão de nós mesmos, os novos Cariris, depende muito da natureza da formação histórica da América portuguesa, do desenvolvimento das forças produtivas e pairando sobre elas a superestrutura da cultura. Portanto encontrar os cariris em nós é encontrar a consciência do mundo que fazemos e do qual resultamos em instituições.

Um dado recente da civilização brasileira, especialmente a partir dos anos 80 é a reversão demográfica dos povos nativos que ainda mantêm sua identidade cultural. As populações, pela primeira vez, reverteram sua tendência a extinção e retornaram a crescer. Outro fato é que os antropólogos começaram a levantar com maior freqüência não a clássica visão do índio vitimado, mas de povos que conservam alguma estrutura de sua identidade e que transformam os paradigmas dominantes em paradigmas de si mesmos, se colocando não no papel de vencido, mas de sujeito de sua própria história.

A seguir passo a trabalhar com um levantamento antropológico feito pela professora Maria de Lourdes Bandeira, no ano de 1972, entre os Cariris da região de Mirandela na Bahia. Procurando adequar os resultados a uma argumentação que caiba na natureza de algumas hipóteses sobre o estágio de um cariri já no final do século XX, portanto trezentos após o desmembramento destes povos. A primeira delas é que os cariris tinham a noção do significado superior de sua língua como identidade no contexto de sua própria história e da superestrutura de sua vida original. A professora Lourdes Bandeira encontrou exatamente isso: a perda da língua foi o que mais modificou a estrutura íntima dos cariris. Eles perderam a capacidade de conversação com o sobrenatural. As desgraças físicas e psíquicas acontecem com mais freqüência com o caboclo por que eles não podem conversar com o encantado ou com os espíritos dos mortos como faziam antigamente.

A vida sexual era fator necessário para que a reprodução ocorresse, mas não o essencial. O essencial na fecundidade é o sobrenatural. Por isso a relação sexual poderia se desvincular do casamento e a esterilidade não era uma disfunção nem do homem ou da mulher, era uma questão do sobrenatural. Se o sobrenatural consentisse a fecundidade ocorria. Ocorrendo a mulher grávida se tornava detentoras de forças especiais. Os desejos que surgiam com a gravidez não eram dela, mas de outra pessoa e por isso deveriam ser atendidos, pois poderiam levar ao aborto. Fundindo a interdição religiosa acreditavam que o aborto provocado era uma afronta ao sobrenatural. O trabalho de parto era uma ritual que pretendia reduzir as dores, dar forças às mulheres e proteger seus corpos. Passavam fumo (de fato tabaco parecia uma constante da cultura cariri), cachaça, alho e pimenta em todo o corpo da gestante. Elas recebiam defumações com alfazema, coentro, alecrim, portanto com ervas de origem européia.

Os cariris absorveram a gênese e mitologia católica, assim como inverteram os elementos da cultura predominante como se fossem seus. Vejamos como tratam da origem de Deus, dos Santos e Jesus Cristo.

Deus é uma coisa mudinha maior que tudo. Ele não se move, limita-se a uma grande complacência com tudo que existe, pois se ele não permitisse, nada se faria, nem o bem e nem o mal.

Os santos são intermediários entre os homens e Deus. Por isso os santos são cultuados. Há o Santo Feito que foi inventado e batizado pelos homens e abençoado por Deus. Os Santos Aparecidos são aqueles cujas imagens apareceram no mundo sem ação do Homem. Os santos só fazem o bem se solicitados e a forma de solicitação é a promessa.Moram no Céu, mas andam muito pela terra. Têm corpo como nós, mas não comem e nem bebem como fazem os encantados. Como os santos se originaram?

No outro século só havia caboclo no mundo. Veio o dilúvio e Deus transformou os da raça pura em Santo e depois eles apareceram no mundo. As imagens católicas são associadas aos Santos Aparecidos e por isso Santo Antonio e Nossa Senhora são caboclos embora tenham as feições de branco. A Santa Cruz é santo, mas não é nem santo feito e nem santo aparecido, foi Deus que criou.

Jesus andou pelo mundo todo, ora como menino, por outra velho, assumiu várias formas. Quem mangasse dele, ele surrava, quem não mangava ele ensinava a viver, separar as frutas bravas das mansas, transformar o pau-de-leite em mandioca, ensinou o caboclo a plantar a maniva, abençoou uma pedrinhas que viraram milho, deu o fogo, sal, o fumo, tudo. Quando os judeus judiaram dele deram-lhe cana que era mais amarga que quinino, mas ele abençoou e fico doce.

Os cariris investigados absorveram as lições da história e se colocam no centro da narrativa em substituição ao português. Sendo assim quando as águas do dilúvio desceram, Deus mandou São Noé (é um santo aparecido e portanto foi caboclo na origem) para ver se tinha alguém e quando ele voltou, disse a Deus que encontrara uns caboclinhos se batendo nas pedras e Deus abençôo. Destes caboclos nasceram os do tronco tribal que descobriram o Brasil e eram donos dele. O português chegou depois. Quem descobriu o Brasil foi Pedro Marechá Cabral a mando da Rainha Isabel, rica, bonita e poderosa. A rainha era cabocla.

Portanto, lendo-se estas narrativas dos remanescentes dos cariris na Bahia, temos a certeza que já sabíamos, não em estado puro, dissolvido, como raiz de alguns modos e sentimentos, como natureza de certas convicções que não se sabe de onde veio, os cariris e os ameríndios estão, assim como os africanos em nosso modo de ser no mundo. A religiosidade popular de Juazeiro e a nordestina de modo geral, quando vista antropologicamente tem muito destas inversões, apropriações, destas conciliações entre culturas que lutam para sobreviver num mesmo povo.

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