sábado, 15 de dezembro de 2007
O que faz Mickey no lugar de Jesus?
Vi a decoração de Natal do Shopping Center Recife, o maior centro de compras da América Latina. Achei brega e não compreendi nada. Devo estar ficando burro. O que Mickey, aquele ratinho chato de Walt Disney, tem a ver com Natal? Nada. A menos que se considere que é um camundongo americano, e que nos Estados Unidos neva e as florestas possuem pinheiros. Podemos raciocinar por essas colaterais absurdas, mas a verdade é que Mickey, a namorada Minie, o amigo Pateta e o cachorro Lupo estão por todos os lados na decoração natalina do shopping, porque são produtos de uma cultura dominante. Só por isso?
Os padres jesuítas, que chegaram à América para catequizar os índios, também ensinaram os pobres selvagens a pintar retratos da Virgem Maria, a tocar violino e a adorar um Deus que estava no céu, coisas que não tinham nada a ver com a cultura deles. Os padres representavam a Igreja Católica e os reinos espanhol e português. No Peru e na Bolívia, a pintura religiosa feita pelos índios copiava modelos da Europa. Com o tempo, eles acrescentaram às telas traços e cores locais: flores dos trópicos, animais e plantas amazônicas, santas com rostos iguais aos das mulheres incas.
Num cansativo e monótono passeio pela decoração do shopping do Recife, não vi um único objeto que lembrasse a cultura brasileira. As casinhas copiavam os gibis de Disney, havia neve sintética, música de harpa eletrônica, guirlandas com bonecos de Mickey e Minie ao centro, pinheiros, profusão de Patetas, e até os rapazes que atendiam as crianças se vestiam de cachorro Lupo. Senti pena imaginando que eles se submetiam ao vexame para ganhar vinte ou quinze reais por dia, mas todos me pareceram risonhos e felizes. A decoração dava sinais de uso. Com certeza já esteve em algum shopping de São Paulo ou do Rio de Janeiro.
A catequese dos padres jesuítas e dos pastores evangélicos cedeu lugar às campanhas das agências de publicidade. Ninguém corre atrás das promessas de uma vida melhor na eternidade; todos querem ser felizes, aqui e agora, comprando tudo o que for possível, mesmo que não possua nenhuma utilidade. Para atrair mais compradores, enchem as lojas de pinheiros, bolas, luzes, Papai Noel, trenós e renas fabricados na China, do outro lado do mundo, onde se ignora o que significam. A cada ano incorporam personagens mais estapafúrdios ao imaginário natalino. Símbolos do cristianismo? O que é isso?
Não se assustem. Há uma intenção em tudo, da catequese religiosa à publicidade para o consumo. O culto à Virgem Maria surgiu no século IV, depois de um concílio em que se considerou o espaço que a Igreja perdia para o culto das deusas pagãs Diana e Ártemis. A presença do boi e do burro na cena do presépio não é mais do que a representação dos deuses egípcios Osíris e Seth, que tinham cabeças de touro e asno, respectivamente. Queria-se dizer com isso que em Cristo até os inimigos se reconciliam. A data da festa natalina foi escolhida por coincidir com o solstício do inverno e com rituais pagãos. Dessa maneira, se trazia mais fiéis para dentro da Igreja.
Decoraram o Shopping Recife com símbolos do capitalismo, que parecem mais atrativos do que os símbolos cristãos. Se a imagem do Menino Deus ajudasse a vender, abarrotariam corredores, lojas e praças com o Jesus Cristinho em sua manjedoura. Disney é um apelo mais forte, apesar do mau gosto e de estar fora de moda. Botam o Mickey no lugar que já foi de Outro. Igualzinho a sempre. Quantas divindades se sucederam ao longo da história? Crenças que pareciam inabaláveis ruíram e hoje são apenas festa e lembrança. É possível que esteja acontecendo o mesmo com o personagem Jesus. Pensem nisso durante a ceia de Natal. E bom apetite.
Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Escreveu Faca e Livro dos Homens. Assina coluna na revista Continente.
Muito providencial esse ponto-de-vista de Ronaldo. Análise lúcida e preocupante!
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