sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Bissexto

Finalzinho de ano existe uma regra imutável e previsível para os próximos meses. Promessas de mudanças nos hábitos de vida ! Uns se comprometem a deixar o cigarro, outros encetam dietas rigorossíssimas, alguns afirmam como certo o começo do Cooper pela manhã. Ano novo ,vida nova ! Após o ribombar dos fogos do Reveillon, vêem-se todos assoberbados por tarefas não tão fáceis de cumprir e que geralmente começam a ficar menos regulares a partir do Carnaval e , o mais das vezes, não têm forças nas canelas para alcançar a Semana Santa.
No mês passado, Eufrázio, um contador de uma pequena loja de Secos & Molhados , nas comemorações do Natal da firma, firmou os pés nos seus propósitos. Os colegas de repartição comentaram depois que o nosso contabilista exagerou um pouco na dose de transformação. É que o nosso comerciário sempre fora um operário padrão, sério, compenetrado, desses que vivem eternamente para o trabalho. Possuía ainda uma pacata vida familiar, casado com Dona Nair Loreto, uma senhora temente a Deus e beata de carteirinha. Tinha dois filhos, já casados, que moravam ou sobreviviam para as bandas de São Paulo. Eufrázio não tinha vícios, vivia nos Encontros de Casais com Cristo e até estudava para formar-se diácono. Era preceptor dos Cursos de noivos na Igreja e um dos membros mais convictos da Ordem do Santíssimo. Já entrado nos sessenta, parece que ia plantando mais nas roças da vida eterna do que nos pomares terrestres. Pois bem, a transformação que ele realizou no último Reveillon , assim, pegou todos de surpresa. Quem lá diabos poderia imaginar uma reviravolta daquelas ? Sem qualquer explicação mais contundente, nas comemorações do Natal, um Eufrázio um pouco mais loquaz do que o habitual desejou os melhores votos para todos e vaticinou aquilo que parecia ser mais uma daquelas temporárias e fugazes promessas de fim de ano:
--- Até o presente momento, meus amigos, não vivi, apenas trabalhei como um burro de carga para os outros. Até parece que vim à terra a trabalho e não a passeio. A partir de agora vou montar no alazão da minha vida e tomar as rédeas do meu destino !
Depois daquele dia, seguiu à risca a promessa natalina. Pediu demissão do emprego que o poria em pijama de aposentado nos próximos cinco anos. Largou a mulher, mudou de casa e de cidade. Soube-se depois que se transferira para Andaraí, na Chapada Diamantina, onde se unira a um rapazinho, design gráfico, e ali haviam instalado o Restaurante de Comida Natural: “Verde que te quero Ver-te”. Abandonou também as hostes católicas e agora freqüentava uma comunidade alternativa lá no “Vale do Capão” . O outrora sedentário Eufrázio agora trabalhava, nas horas vagas, como guia turístico, nas sinuosas trilhas do Vale do Sincorá. Ao invés da opa do Santíssimo envergava duas recentes e imensas tatuagens: um dragão vermelho e de unhas afiadíssimas nas costas e um carismático Fidel Castro no ombro esquerdo, além de um brinquinho discreto na orelha direita.
Alguns amigos ,que em viagem depois o visitaram, trouxeram a novidade de todas as imprevisíveis mudanças ocorridas no nosso contador. A cidade em peso o criticou e comentava que o homem tinha endoidado de vez, ninguém perdoava a sua coragem e, pior, todos abominavam a constatação de que os que o visitaram , liam uma incontestável felicidade nos seus olhos. A cidade impossibilitada, pela distância, de assassiná-lo em vida, resolveu encaminhar um abaixo assinado para Eufrázio, uma espécie de execração pública, condenando-o por sua atitude considerada irresponsável e vulgar. O contador respondeu com um pequeno bilhetinho que foi lido na Câmara de Vereadores.
--- Infelizmente não posso fazê-los felizes. Cada um é o artífice da sua própria felicidade. Ninguém pode viver a vida pelo outro e nesta viagem a passagem é apenas de ida. Saiam do casulo das suas vidinhas estranguladas e vivam ! Quanto a mim as mudanças prometidas para este ano apenas começaram e lembrem : este ano, graças a Deus, é bissexto !



J. Flávio Vieira

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