sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Prirrinido !

O Cel Serapião Candeia fora um dos primeiros a se estabelecer nas terras próximas ao Rio Pananaporã , onde muitos tempos depois viria brotar a pequena Vila de Matozinho. Chegara ali em tempos árduos, convivendo com alguns remanescentes de índios e tentando arrancar todas as necessidades vitais da pequena lavoura, da caça e da pesca. Só muitos anos depois começaram a aparecer naqueles ermos os primeiros comerciantes: tropeiros que varavam os sertões com uma récua de burros onde apinhavam quinquilharias de toda espécie : panelas, espelhos, perfumes, roupas femininas, livros, sapatos, temperos, armas e uma infinidade de utilitários que iam abrindo o leque de possibilidades com encomendas que eram feitas a cada viagem pelos novos e velhos fregueses. Faziam o trabalho dos sacoleiros, muambeiros e crediaristas dos dias atuais, só que sem nenhuma concorrência por parte de outros comerciantes. Quando chegavam às fazendas, juntavam ao seu redor um mundão de gente curiosa: todos queriam se pôr à par das últimas novidades da capital. As sinhazinhas babavam com as roupas da moda , os perfumes franceses, as louças; os meninos com os brinquedos, os senhores com peças utilitárias para o campo e a agricultura.
O Cel Serapião saboreava com um gosto incomum a vinda destes emissários da novidade. Ao vê-los adentrarem a fazenda, com sua tropa de burros, dava feriado, fazia-os desfazerem toda carga no grande pátio da casa grande e passava a escolher, com a família, cuidadosamente, suas compras, como se estivesse , nos dias atuais, em um Shopping de luxo. Candeia sempre fora um grande comprador e sua fama atravessara as fronteiras de Matozinho e fizera-se quase que uma lenda, indo de boca em boca, de tropeiro a tropeiro. Junto com este item do currículo , no entanto, ia uma outra faceta do nosso fazendeiro que igualmente se fazia conhecida de todos. O homem era duríssimo para pagar as contas. Não é que não saldasse as dívidas, fazia-o muito a contragosto: dinheiro daquele bolso só saía à fórceps. Os caixeiros-viajantes, com seu SPC rudimentar – a língua— , preveniam todos os colegas sobre aquele hábito do nosso Candeia. Por um lado, não queriam descartar um cliente do porte do coronel e , por outro, como só retornavam com intervalo de três ou quatro meses , precisavam, necessariamente, receber o pagamento a vista com fins de pagarem em dia os fornecedores e poderem se reabastecer para novas viagens a lombo de burro sertão a dentro.
O rudimentar SPC dos tropeiros identificara perfeitamente a técnica protelatória de pagamentos de Serapião. Depois de todo um dia examinando a mercadoria , detalhadamente, já à noitinha, o coronel pedia que o vendedor fechasse a conta. O tropeiro tirava o lápis que descansava cuidadosamente atrás da orelha e numa folha de papel de embrulho começava a somar os itens , finalizando com a cruz da prova dos nove. Aí nosso comerciante sisudo informava:
--- Coronel toda mercadoria que o senhor escolheu, com um abatimento que faço por conta de o senhor ser um cliente especial nosso, dá a bagatela de : 220$10 ( duzentos e vinte mil réis e dez vinténs) .
Serapião, contemplativo, assuntava um ponto distante do céu e confirmava :
--- Certo, certo, vou ali pegar o dinheiro, já volto.
Caminhava, então, para o quarto, onde possuía um grande cofre de ferro e punha-se a girar aquele círculo com os números, para um lado e para o outro, em busca de um segredo imponderável, até que , após alguns minutos, rodava a maçaneta e, num clique, abria a pesada porta do cofre. Pegava então uma nota grande de quase um palmo, amarelada , com a imagem do Deus Mercúrio à esquerda e a de Campos Sales à direita e , no meio, contornando o brilho do sol, os dizeres : República dos Estados Unidos do Brazil. Era uma nota de um conto de réis e só gente de dinheiro é que possuía uma daquelas. Com dez notinhas daquelas podia-se passar um mês atravessando o Atlântico num navio de luxo e pagava ainda três meses de estadia na Europa. Pois bem, o coronel ia até a varanda , estendia a nota para o vendedor e pedia:
--- Rapaz, estou sem dinheiro trocado, tire a dívida daí e me dê o troco.
A dificuldade mostrava-se previsível. Quem diabos tinha verba em caixa para trocar uma notona daquelas. O tropeiro , então, explicava ao coronel que não tinha troco suficiente. Serapião, por sua vez, tendo alcançado o intento, lascava:
---Pois é, rapaz, como eu não tenho trocado também, na próxima vez que você vier , a gente acerta.
De tanto pregar o golpe, a notícia se espalhou. Um belo dia chegou um tropeiro na fazenda e a história se repetiu. Após o fechamento, a compra orçou em 310$20 ( trezentos e dez mil réis e vinte vinténs). Ao receber a nota de um conto nas mãos, no entanto, para surpresa do coronel, o tropeiro calmamente tirou do matulão exatos : 610$30 ( seiscentos e dez mil réis e trinta vinténs). Serapião, tomou um susto com o inesperado troco nas mãos e sapecou:
---- Ô Home prirrinido, vixe !


J. Flávio Vieira

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