quinta-feira, 27 de março de 2008

A Descendência de Caim



“ Que fizeste ! Eis que a voz do sangue
do teu irmão clama por mim desde a terra. De ora
em diante , serás maldito e expulso da terra, que abriu
sua boca para beber de tua mão o sangue do teu irmão.
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Caim retirou-se da presença do Senhor , e foi habitar
na região de Nod, ao oriente do Éden”
Gênesis 4.10-4.16


A violência tem se tornado uma irmã siamesa da sociedade moderna. Mal se abrem as folhas do jornal ou comprime-se o botão do remoto, imediatamente salta à nossa frente a rubra tinta com que é escrita, hoje, -- mais que nunca-- a história da nossa humanidade. O leitor há de lembrar não ter sido nos últimos anos o desencadeamento da luta fratricida. Desde as cavernas , até o Shopping Center , o homem tem uma terrível trajetória. À medida que a Ciência avançava, avassaladoramente, em busca do conhecimento e das descobertas que poderiam curar moléstias , minorar o sofrimento, proporcionar o conforto ia, por outro lado, criando as guerras, alimentando as diferenças, acendendo as fogueiras, forjando os grilhões. Ao descer das árvores nosso irmão primata trouxe consigo a inteligência criadora numa mão, mas na outra teimou em carregar ainda os rapaces instintos da floresta que havia acabado de abandonar. O homem é esta mescla de lobo e cordeiro , de anjo e demônio.
O que mudou, enfim, nos últimos anos ? Por que a violência tem se tornado cada vez mais presente e insuportável para nós ? Claro que com o boom dos meios de comunicação, começamos a ter olhos espalhados por todo planeta. O massacre dos monges budistas do Tibet nos entra de porta adentro, como se estivesse acontecendo na nossa calçada. E aí salta, de repente, a pergunta na nossa frente : até que ponto presenciar tanta chacina , tanto sangue escorrendo rua abaixo, até que ponto isto termina por nos embotar a vista e fazer com que toda violência se banhe num enganador molho de normalidade ? E ainda, qual a influência destas notícias em despertar o demônio dormente nas cotidianas testemunhas oculares dos crimes da humanidade ? Estas questões são polêmicas e aqui ficam para reflexão. Alguma coisa, no entanto mudou nos tempos modernos: a crescente capacidade destruidora humana com a fabricação de armas de destruição em massa. Bons tempos aqueles em que o homem dizia-se lobo do homem, hoje o homem é a alcatéia do seu semelhante.
Esta semana , aqui em Crato, todos se espantaram com a notícia do assassinato de um jovem e promissor advogado, aparentemente contratado pela própria esposa e o amante dela. O pretenso motivo, o mais antigo da história deste mundo : dinheiro que deveria vir de um seguro de vida. O grosso da população comentou em todos os cantos e lugares, aparentando uma consternação distante e mal disfarçando aquele ar sádico que permeia a maior parte das nossas relações sociais. No fundo, todos estavam, de alguma maneira, felizes com a notícia que haveria de alimentar as línguas nos próximos quinze dias, até ser substituída por uma outra, de preferência, igualmente cabeluda. Pouco se ativeram à tragédia terrível que tinham pela frente: um jovem advogado que teve a vida ceifada impiedosamente; uma adolescente plena de conflitos da própria idade e que tem a vida definitivamente arruinada e seu filho órfão de pai e mãe e que terá que crescer carregando consigo o peso de muitos cadáveres às costas. Antes dos nossos juízes de plantão, nas praças, clubes, mesas de bar, declararem as suas sentenças , lembremos que ninguém tem consigo os autos do sentimento, das emoções, das fragilidades pessoais para ter condições de fazer juízo de valor sobre o caso. As famílias envolvidas já carregam consigo tanta dor, tanto sofrimento que ninguém tem o direito de torturá-las mais ainda. Deixemos que a justiça siga seus passos , investigue e julgue imparcialmente . A vida, por outro lado, haverá de sorrateiramente fazer a sua parte, ninguém mexe no equilíbrio do universo impunemente.
E não se engane não, caro leitor, qualquer homem nesta terra é capaz da mais inimaginável atrocidade. Os maiores crimes da humanidade foram cometidos por pessoas perfeitamente normais aos olhos do povo, meros burocratas, a maior parte das vezes cumprindo ordens. Todos nós, queiramos ou não, fazemos parte da descendência de Caim. Se puros, perfeitos e imaculados estaríamos no Éden. Imperfeitos como somos, um dia tivemos de arrumar os trapos e nos mudamos para as frias terras de Nod.


J. Flávio Vieira

Um comentário:

  1. Isso é que não falta, juízes de plantão, inclusive, cada um dono da verdade, bradando seus valores, não em busca de harmonia, mas sim, impondo seus valores sobre os de outrem. Coisa que acontece demais no velho, em todos os sentidos, Crato.

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