sexta-feira, 14 de março de 2008
Lixo
O catador de lixo José Carlos Ferreira de Sousa, de 39 anos, morava no Jangurussu, um dos bairros mais pobres de Fortaleza. Adoeceu, no último dia cinco de março, e procurou o Frotinha de Messejana, onde foi medicado e liberado, à noitinha, mesmo sob os protestos da irmã que não o achava recuperado suficientemente. De volta à casa, foi encontrado morto, na madrugada do dia seguinte, possivelmente por complicações da Dengue. Até aqui o ouvinte, perplexo, há de dizer que não existe notícia. Pobre morrer sem assistência médica neste país não é exceção mas regra. Mas tão próximo da Semana Santa, a Via Crucis de José Carlos não podia parar por aí. A miséria não tem limites para o infortúnio. A família sem posses para contratar uma funerária, tentou retornar com o corpo para o Frotinha, no intuito de conseguir o Atestado de Óbito: em vão. Fortaleza, uma megalópode de mais de três milhões de habitantes , simplesmente não possui um Serviço Público para o traslado de pessoas falecidas de morte aparentemente natural. Uma líder comunitária local deu então a idéia de transportar o corpo do catador, na sua própria carrocinha. E lá saiu aquele cortejo sui generis pelas ruas da cidade, com o corpo de José exposto a um sol escaldante até o hospital, quando, impedidos de entrar, foram informados que teriam que se dirigir ao Serviço de Verificação de Óbitos , na distante BR 116. Mais uma vez o tenebroso cortejo pôs-se a cruzar ruas , sol a pino, diante dos olhos curiosos de transeuntes apressados e indiferentes. José Carlos passou a vida a catar as escórias que escorriam dos esgotos da nossa Sociedade e conseguiu arrancar de tão pouco a sua subsistência, mal percebia que para o mundo à sua volta ele tinha o mesmo valor nominal dos objetos que transportava. Talvez por isto mesmo tenha simbolicamente fechado as cortinas deste mundo na mesma carrocinha que usava para transportar os outros dejetos. Também na semana passada, divulgaram-se escutas telefônicas feitas em ligações de políticos de uma cidade da Grande São Paulo : Santa Isabel. A 54 Km da capital, ela vem sendo investigada por conta de um esquema gigantesco de corrupção envolvendo políticos locais. Na escuta, secretários municipais combinavam uma maneira sensacional de livrarem-se de mendigos e moradores de rua. Embebedá-los e transportá-los clandestinamente para cidades do Rio de Janeiro, a no mínimo quatrocentos quilômetros de Santa Isabel. Não muito diferente do que aqui no Cariri se tem feito com os jumentos.
Existe um fio condutor aparentemente invisível entre as duas histórias verdadeiras e tão simbólicas. Em ambas o assunto central é Lixo. A borra final da nossa modernidade.Lixo humano que se foi acumulando nas margens das grandes cidades e que de repente começa a poluir nossas mentes e nossos olhos e que precisa de alguma maneira ser incinerado. Igualzinho ao outro que se acumula nos grandes aterros sanitários e que fechamos o nariz ao passar por perto, com medo de contágio. A elite que se ruboriza ao falar do Holocausto, na Segunda Grande Guerra, não tem nenhum pejo em preparar uma Solução Final para aquilo que considera a ralé, a escória, o lixo último da nossa sociedade de consumo. Para mim a Paixão de Cristo este ano encenou-se prematuramente ali no Jangurussu. Os profissionais de saúde do Frotinha , como Judas, beijaram a fria face de José Carlos e o entregaram para o martírio. O Estado, com Pilatos, lavou as mãos , indiferentemente. Não bastasse isso, assumiu ainda o papel do centurião: martirizando nosso catador de lixo apondo-lhe a coroa de espinhos, cobrindo-o de chibatadas e atando-o à cruz derradeira. Maria José , a irmã do crucificado, se alternou nos papéis de José de Arimatéia e Verônica, trazendo um pouco de conforto no caminho ao Gólgota. O povo, como sempre, embriagado de pão e circo, escolheu o Barrabás da sua própria distante tranquilidade, da sua felicidade restrita e privatizada. José Carlos seguiu , resignadamente seu Calvário, junto com outros tantos condenados de Santa Isabel e de outros muitos lixões deste país afora. Um mundo que há mais de dois mil anos repete diariamente este tétrico ritual , tem alguma possibilidade de ressureição ?
J. Flávio Vieira
Esse seu olhar sobre as histórias hediondas da sociedade é muito profundo. Uma nalogia mais do que providencial, digo, principalmente para aqueles que põem na boca o nome de Jesus, na forma de um guerreiro das cruzadas modernas, em busca de salvação própria, através do subtérfugio da catequese e dos purismos celestiais. Não refugo a idéia de uma revelação, por demais necessária, mas acredito muito mais na necessidade de converter as nossas próprias tripas, para que a bosta ali residente em condomínio, sirva pelo menos como adubo.
ResponderExcluirAbraços