sexta-feira, 7 de março de 2008

O MANSO

Ele era um desses pacatos, simples, porém opinioso. Tinha um raciocínio rápido para o quer que seja além da vasta cultura que seus olhos arregalados e negros puderam sorver com línguas e dentes. Josias tinha um verdadeiro amor pela sabedoria. Estudava longas madrugadas a fio e tinha o mais profundo conhecimento sobre a alma humana. Cada fresta, pecado, aresta onde pudesse escorrer um filete de imperfeição ele detectava no seu silêncio ou no riso cínico e simpático.
Por força do destino nada do seu vasto conhecimento foi aproveitado. Sua personalidade muitas vezes arredia o indisponibilizou em várias ocasiões que era ditas como “uma oportunidade de ser gente”, mas que, a seus olhos tranquilamente poderíamos afirmar: “Uma das mais vastas oportunidades de se mostrar medíocre”. Um de seus melhores amigos convidou-o para ser vendedor de medicamentos. A princípio recusou de cara à proposta, mas as condições que estava não lhe permitiram outras opções. A ameaça da fome o cercava constantemente.
- Deixa disso “homi”. A coisa é simples. Você vai passar por uma entrevista. Depois disso lhe dão as instruções de como se portar ao visitar cada consultório, como vender cada medicamento, a composição de cada um etc etc. Isso é o de menos pra ti.
Pensou calado em seu íntimo: - Ah canalha! Quem esse povo acha que é para me ensinar como me comportar na merda de um consultório? – Mas sobre o determinismo da própria educação, sua resposta saiu escorrida quase que como uma lágrima:
- Vou sim meu caro. Agradeço desde já pela grandiosa oportunidade.
Logo começou a trabalhar. Os testes pueris da empresa eram nada mais que piada para Josias. No primeiro dia de trabalho foi ao consultório do doutor Marcos. Toda a equipe de vendedores comentou com aquele fervor que só a gente mais chula é capaz de tecer:
- Vai ser engolido no primeiro erro!
- Marquinhos! Ele vai tremer na base. O Marcos vai fazê-lo sentir dor nos próprios ossos.
Era impressionante como a “amizade” podia fazer os mais ardis comentários. Quem visse a turba conversando de longe podia ver uma equipe de Medusas com suas cobras entrelaçadas, unidas pelo próprio veneno.
Ao sair da empresa o "humilde" entrou em seu caso. Andava com seu passo franciscano quase a pedir desculpas pelas pegadas que deixava no chão. Chegou ao consultório, entrou, deu bom dia a todos e no compasso certo ouvir a voz da atendente:
- Doutor Marcos está a sua espera.
Olhou para a moça de olhos verdes, corpo franzino e comentou para seu próprio instinto: - Mordia todinho até o dedão do pé!
Apenas sorriu para ela e entrou em silêncio.
Na tentativa de simpatia deu um sorriso, cumprimentou o médico e ao estender a mão para ele ficou pasmado. Sua mão erguida diante do doutor Marcos e o mesmo de braços cruzados fitando o rosto trigueiro de Josias despeja:
- Josias...você sabe quanto tempo eu levo para fazer a assepsia destas mãos que salva vidas?
- Ele risonho pela surpresa do absurdo. Sem acreditar no que ouvia, nem no que estava diante, pensou em todos: Hitler, Stalin, Mão Tse Tung... em todos que já tinha trucidado milhares de vida, responde em sua humildade sorridente:
- Não doutor. Diga-me...quanto tempo o senhor leva?
O doutor Marcos, aproveitando-se de sua situação, de estar em seu consultório, e bem sabedor que o emprego de todo vendedor de medicamentos depende basicamente das receitas por médicos receitadas, cospe suas palavras sábias pela segunda vez:
- Levo dez minutos pequeno Josias....
O que terminou de falar não se sabe. Apenas que a palavra ”pequeno” envergou os vergalhões do orgulho de Josias. Ele sorriu, pediu desculpas e, após convidado, sentou-se. O que veio a fazer ali nem mais sabia, mas o fez num automatismo de caixa de supermercado. A venda foi brilhante e sua argumentação permaneceu imparcial a situação desenhada no início.
Era verdade que ele já era bem sabedor de várias estórias como esta passadas com outros vendedores. Mas em sua humildade ou orgulho falou pra si, em seu próprio silêncio, frieza, com um riso de Mona Lisa no canto da boca: - Comigo não. Foi em casa, armou-se e voltou a trabalhar a tarde inteira como se nada tivesse acontecido.
No final do dia, estacionou o carro perto do consultório. Esperou do lado da porta e sentiu estalar em seus tímpanos os sons dos passos do canalha. Um “sorriso brincou em sua face e ele disse para si: - Perdeu Dr. Perdeu comigo...”. A firmação vinha como um vômito do seu ego. Assim que saiu pela porta o doutor Marcos ouviu um mugido grosso:
- Boa noite mestre.
A rua escura, a luz bruxelante de mercúrio que escorria dos postes e o rosto cínico do Josias inspiravam medo até os ossos. Seus tendões vibravam como uma vara verde ao vento. Mesmo assim, a imundice da própria personalidade resistiu bravamente.
- Boa... o que queres? Já não acabei de falar o que tinha que falar contigo?
Ainda com o riso pendurado no resto retrucou:
- Talvez mestre... Mas dessa vez quem fala sou eu... - puxou um velho trabuco e encostou o cano na fronte do doutor. Imediatamente a urina escorreu grossa e fétida. A sujeira inspirava o ego do Josias que agora não era mais o humilde, mas uma espécie de demônio qualquer.
- É impressão minha ou o senhor está sujo? – A lançar a pergunta encostou o “amigo” contra a parede sob a força do revolver. A mão trêmula parecia nervosa. Tudo mentira, tudo ensaio, beirava o talento. Por última, no auge de sua psicopatia:
- Adeus imundo. – Aí dispara, o eco vibra, mas o medo veio antes... o doutor desmaia sobre a própria urina. A surpresa faz o nosso outro Josias gargalhar de prazer. Nunca mais seria um manso depois daquilo. Ver a higiene levitando na própria urina era de uma poesia incontestável.

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