segunda-feira, 2 de junho de 2008

Artigo de Océlio Teixeira publicado no "Diário do Nordeste", domingo, 1º de junho de 2008



Festa do Pau da Bandeira de Barbalha:
fé, diversão e significados

Océlio Teixeira de Souza[1]
A festa de Santo Antônio/Em Barbalha é de primeira
A cidade toda corre/(É um fuzuê medonho)/Pra ver o pau da bandeira
Olha quanta alegria/Que beleza/A multidão faz fileira
Hoje é o dia/Vamos buscar o pau da bandeira
Homem, menino e mulher/Todo mundo vai a pé
A cachaça na carroça/Só não bebe quem não quer
Só se ouve o comentário/Lá na Igreja do Rosário
Que a moça pra ser feliz/Reza assim lá na Matriz:
Meu Santo Antônio, casamenteiro.
Meu padroeiro, esperei o ano inteiro.
(Luiz Gonzaga)

A música dos compositores Alcymar Monteiro e João Paulo Júnior, imortalizada na voz do saudoso Luiz Gonzaga, retrata com poesia, singeleza e riqueza de significados uma das maiores festas populares do Brasil contemporâneo: a Festa do Pau da Bandeira de Santo Antônio de Barbalha. A Festa marca a abertura dos festejos em homenagem a Santo Antônio de Pádua e constitui-se numa festa dentro da festa do padroeiro de Barbalha.

A devoção a Santo Antônio, no Brasil, remonta ao período colonial. O teólogo e historiador Vergílio Gamboso, citando Frei Antônio de Santa Maria de Jaboatão, afirma que no Brasil dos primórdios “não era raro encontrar mais de uma imagem do Santo no altar … e que cada família fazia questão de ter o “seu” SA!”. [2]

Com o decorrer dos tempos Santo Antônio se tornou um dos santos mais queridos do Brasil. É o Santo com o maior número de Freguesias, cerca de 228, conforme afirma Câmara Cascudo em seu Dicionário do Folclore Brasileiro. Essa popularidade, ao que parece, se deve a sua múltipla especialidade: santo casamenteiro, santo das coisas perdidas e santo do ‘pão dos pobres’.[3] Em Barbalha, a devoção ao taumaturgo de Lisboa remonta ao ano de 1778, quando teve inicio a construção da capela em sua homenagem. A exemplo de muitas outras cidades brasileiras, Barbalha cresceu e se desenvolveu em torno da igreja do seu santo padroeiro.

A devoção a Santo Antonio em Barbalha foi enriquecida por um elemento novo: o cortejo com o mastro pelas ruas da cidade, seguido do hasteamento da bandeira. Instituído oficialmente, em 1928, o cortejo, ao longo dos anos trinta do século passado, caracterizou-se por ser uma expressão religiosa oficial, marcado pela piedade, fé e sacrifício em homenagem ao Santo Padroeiro. A partir dos anos quarenta, porém, o cortejo passou por um processo de popularização e carnavalização[4]. Nesse processo, dois carregadores tiveram papel fundamental: um criador de gado e marchante, Vicente de Moça, nos anos quarenta; e um velho ferreiro, Melquíades Veloso, nos anos cinqüenta e sessenta. Os dois foram os responsáveis pela transformação do cortejo na Festa do Pau da Bandeira.

Atualmente, a Festa do Pau da Bandeira é um evento de grandes proporções. No dia de sua realização milhares de pessoas acorrem a Barbalha para acompanhar o cortejo. No último ano, 2007, estima-se que cerca de oitenta mil pessoas participaram da festa. Mas, quem são os homens que carregam o grande pau que servirá de mastro à bandeira de Santo Antônio? Quais são os significados desse ritual para os carregadores do pau?

Historicamente, os carregadores são homens das camadas populares. Assim tem sido desde os primeiros anos do Cortejo do Pau da Bandeira até os dias de hoje. As profissões ocupadas pelos homens que têm carregado o pau da bandeira, ao longo desses 80 anos, são as mais diversas. No entanto, dois grupos têm se destacado: os marchantes, que vêm desde a época de Vicente de Moça, e os “chapeados”, que foi um grupo que predominou nos anos 60 e início dos 70.

Atualmente, o grupo que se destaca entre os carregadores e que são considerados os “enfrentantes” é composto pelo chamado “grupo do mercado”. São cerca de 15 carregadores experientes. A maioria é constituída por marchantes, mas há também pequenos comerciantes, pintores, pedreiros, agricultores e outras profissões. Esse grupo constitui, informalmente, a comissão de organização e coordenação da Festa. Eles se revezam entre carregar o pau e coordenar, junto com o Capitão do Pau, os demais carregadores.

Vamos agora aos significados do Cortejo do Pau da Bandeira. Quero aqui destacar dois. Primeiro, o sentido de inversão: o Cortejo que deveria ser um ato religioso de piedade, fé e sacrifício em homenagem ao Santo Padroeiro, conforme orientação da hierarquia eclesiástica, foi transformado num espaço de afirmação social e religiosa dos carregadores, homens simples que, no dia-a-dia, ocupam posições sociais e religiosas inferiores. Eles, aos poucos, criaram uma forma própria de reverenciar e homenagear o padroeiro do município, marcada pela irreverência, pelas brincadeiras, pelo lúdico, enfim pelas suas experiências de vida. O espaço do Cortejo do Pau da Bandeira não pertence ao padre ou ao prefeito, mas sim a eles. Nesse espaço, as regras e as normas são estabelecidas pelos carregadores.

Um segundo significado que quero destacar é o Cortejo enquanto ritual de passagem da adolescência para a vida adulta e espaço de afirmação masculina. O objetivo de todo carregador é chegar à cabeça do pau, ou seja, carregar o pau na sua ponta mais pesada. Para tanto, existe uma disputa entre eles, que começa ainda na adolescência.

Nos anos 40 do século passado, as crianças e adolescentes iniciavam sua participação carregando as tesouras, pedaços de paus usados em X para auxiliar no levantamento do mastro. São muitos os relatos dos carregadores antigos, ou dos ex-carregadores, nesse sentido, como este a seguir: “O ano de 48, eu me achava com 14 anos. Eu posso dizer que eu participei de carregar o pau da bandeira, por que eu não ia carregar o pau, mas já tava carregando as tesouras. (...) Mas olhe então, por essa razão que eu me criei vendo aquele incentivo, que todo mundo só queria carregar o pau da bandeira era no pé do pau. Então foi isso que eu quis ocupar um lugar”.[5]

A realização e o prazer de carregar o pau na sua parte mais grossa são motivos de orgulho, expressos, sobretudo no momento do encontro do Cortejo com a multidão que aguarda o mastro na cidade. “Pra mim era tudo na vida aquele negocio ali... Era mesmo que tá no céu”, descreve um ex-carregador, referindo-se aos anos 50 e 60, quando esse encontro ocorria na Igreja do Rosário. Já outro carregador, também dos anos 50 e 60, descreve dessa forma a emoção do encontro: “A vontade é que se pudesse se levava só, porque aquela parte é a mais emocionante.”.
Para finalizar, quero destacar um fato, ocorrido provavelmente em meados dos anos 80, que demonstra de forma emblemática a importância que o carregamento do pau tem na vida dessas pessoas. O relato é de um antigo carregador: “Houve um ano que o pau muito pesado e ele atrasou e padre Euzébio quis trazer o pau da bandeira arrastado por um trator, rebocado por um trator. Aí houve exatamente uma revolta, por que ninguém..., os componentes do pau da bandeira gritaram lá que ninguém apegava, que trator nenhum do mundo encostaria naquele pau pra carregar ele. Então ele tinha que ser arrastado era no braço dos homens e não arrastado por trator.”.
[1] Océlio Teixeira de Souza, professor do Departamento de História da Universidade Regional do Cariri – URCA. Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, tendo defendido a dissertação: A Festa do Pau da Bandeira de Santo Antonio de Barbalha(CE): entre o controle e a autonomia(1928 – 1998), em agosto de 2000.
[2] GAMBOSO, Vergílio. Vida de Santo Antônio. Aparecida (SP): Santuário, 1994.
[3] CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 6 ed. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1988.
[4] Uso esse termo conforme a acepção de M. Bakhtin. Para este autor, o carnaval na Idade Média e no Renascimento constituía-se na “segunda vida do povo, baseada no princípio do riso. É a sua vida festiva.” Ou seja, o carnaval representava, mesmo que temporariamente, a criação de um segundo mundo, baseado na inversão brincalhona dos valores e hierarquias estabelecidos e na exaltação da abundância, da fertilidade, do baixo corporal, etc. Ver: Mikhail Bakhtin. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 2 ed. São Paulo/Brasília, Hucitec/Edunb, 1993.
[5] Os nomes dos carregadores ou ex-carregadores foram mantidos em sigilo com o intuito de preservar as identidades e privacidade dos mesmos.

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