sexta-feira, 27 de junho de 2008

Cem anos de encanto


Lembro de quando ouvi (ou li) pela primeira vez o nome de João Guimarães Rosa. Eu devia ter uns onze anos e a prova de português falava de um escritor nascido em Cordisburgo: um escritor do sertão. Na minha turma nem todos sabiam o que era o sertão: morávamos numa cidade fria e cinza, fechada em si e (em tese) auto-suficiente. Eu, no entanto, sou filha de sertanejos e visitava o sertão todos os anos... eu era uma exceção.

A verdade é que eu sempre tive o sertão em mim. E acho que também nasci com o retrato de Guimarães Rosa gravado em meu coração (amar não é verbo; é luz lembrada). Dez anos se passaram desde aquela prova na escola e nesse intervalo de tempo eu me apaixonei pelo tal escritor mineiro. Hoje ele faria cem anos se estivesse vivo. Eu gostaria de comemorar esse dia. Mas pergunto: co-memorar com quem? Rosa é como o sertão: todos falam dele, mas quase ninguém o conhece. Pior - quase ninguém quer conhecer. É com tristeza que ouço esse silêncio gritante sobre o único escritor brasileiro que concorreria ao Nobel de Literatura, se não tivesse "encantado" antes da hora.

Aliás, o Guima não é apenas um erudito, um mago, um regionalista. Ele é o único homem que soube desconstruir e reconstruir a língua, fazendo dela um instrumento que fala não à mente, mas ao coração.

Lamento que nem todos percebam a grandeza dele. Acho que sigo sendo exceção. Como diz sua "Menina de Lá", tatu não vê a lua. Parece que o Brasil anda se perdendo em buracos e deixando de ver o brilho dos astros no céu. É uma pena. E olhe que a "luz é para todos. As escuridões é que são apartadas e diversas". Mas "quem vai arrazoar com homem de má cabeça?". Eu desisto de pensar sobre o motivo de o Brasil esquecer Guimarães Rosa. Como ele dizia, "tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles". Vivemos, de modo incorrigível, distraídos das coisas mais importantes. Minha vingança é que "com o que outro míngua, eu me sobejo". Seja o que seja.

Vou comemorar sozinha esse dia e dormirei a me perguntar: todos estão loucos, neste mundo?

Viva, Guimarães Rosa. Em meu coração, ao menos, você ainda vive.

5 comentários:

  1. Amanda: o mais aprofundado disso que dizes se encontra no fato de que igualmente tantos escritores se encantaram na memória cultural brasileira. O mesmo não acontece com a música pois além de poder ficar como pano de fundo ambiental tem os e-mule da vida com seus mp3. Já a literatura é dominadora, o sujeito tem que ser apenas dela naqueles momentos. É um encontro reservado a dois.

    Aí temos: as nossas casas estão plenas de distrações (temos orquestras, duos ou vocais solos, temos exposições de fotos e pinturas, temos cinema e temos toda a parafernália tele- para encontrar no éter que seja outras pessoas que aqui não estão); fora da casa é uma mobilidade inútil e bombada, necessitada de uma espécie de aeróbica funcional e trabalhista. Mas temos o pior: o analfabetismo funcional, a escolaridade tocada por gerações de professores não leitores, a família não leitora e os amigos iguais. E tem mais: as cidades médias não têm livravrias, não têm salas de leitura, não têm bibliotecas, embora possamos comprar pela internet.

    Finalmente Amanda: a arte, como Guimarães Rosa, contrariando o que disse ser uma relação a dois no momento de sua realização, é, também, uma espécie de fala coletiva nos pós. O maior encanto da literatura é o seu debate, a troca de impressões, os pontos mais destacado por cada um, a tentativa de captura do conjunto do texto pelo coletivo. Então falta debate literário, iguais a esse que você fez.

    ResponderExcluir
  2. Querida Help, obrigada!

    Mas todas as honras desse dia (e de todos os outros) são pro Guima.

    -----------

    José do Vale:

    Concordo contigo. Acho que o problema é mais profundo e sempre converso sobre isso com as pessoas que convivem comigo. Comecei a me apaixonar por literatura exatamente na época em que vim morar no Ceará e não conseguia me adaptar à mudança: meus novos amigos foram os livros. Eles preencheram minha solidão. Hoje em dia acho que muita gente já não tem "tempo" de ser só. E a internet, sem dúvida, exerce grande influência nesse fenômeno.

    O acesso aos livros ainda é difícil, primeiro pela própria falta de incentivo à leitura (quem é que tem o amor pelos livros? pra quê e por que ler?), depois pela falta de instrumentalização (é realmente triste ver a quantidade de analfabetos funcionais...), posteriormente, pelo alto valor do objeto "livro".

    O conhecimento, pros brasileiros, não é um fim, mas o meio. O diploma, na verdade, é o meio. Por isso o saber continua sendo desprezado. O que me deixa louca da vida é ver que todos já parecem ter desistido dessa cruzada... quase ninguém tem mais esperança no zweig e seu (nosso) país do futuro. Eu ainda tenho. E ainda acredito (que sonhadora!) que educação é a única solução.

    Por fim, devo esclarecer que meu lamento em relação ao Rosa é que hoje todos estão falando sobre os cem anos de morte de Machado de Assis (sim, o grande escritor que é enfiado goela abaixo, sem o menor preparo, aos pobres alunos) que - é claro - foi um grande brasileiro e deve receber toda a atenção que já costuma receber... MAS. E Guimarães Rosa? Por que os professores de ensino médio e os estudantes de letras o esqueceram? Por que a tv não fala dele, por que não há grandes grupos de estudos sobre sua obra, como existem em relação a Machado de Assis? Eu não entendo.

    ResponderExcluir
  3. Amanda, vamos dividi-lo um pouco, pois ele vive em meu coração também.
    Parabéns pelo texto.
    abraços

    ResponderExcluir
  4. Ah, eu gostaria de dividir o Rosa com o mundo todo!

    Co-memorar é sempre melhor que memorar sozinho, não?

    ResponderExcluir