sexta-feira, 27 de junho de 2008

PEDRO

O ritual repetia-se quase que diariamente. Um pobre verdureiro, geralmente no horário do almoço, deslocava-se penosamente até a igrejinha do Pimenta. Galgava a rampa do templo fechado àquelas horas e, na entrada da capela, improvisada de púlpito, solenemente retirava de uma tosca sacola, nobres vestes que ele mesmo fabricara. Paramentava-se, cuidadosamente, com toda solenidade que o momento exigia. De início, se enfronhava numa alva talar que lhe cobria os pés, perceptível a forma artesanal da fabricação pela sujidade em alguns pontos da indumentária e pelo amarrotado do tecido. Encilhava depois um cíngulo branco à cintura e apunha uma estola vermelha sobre os ombros, que lhe caía delicadamente sobre o peito. Tomava, então, às mãos um livro antigo e punha-se a pregar numa linguagem intraduzível, talvez um dialeto do sânscrito, para uma platéia completamente imaginária. Terminado o culto, recolhia os paramentos e voltava ao trabalho, com um ar feliz, renovado , como se imerso em gotículas do sagrado.

Vi-o diversas vezes nas suas atividades sacerdotais, tantas que terminei por embotar os olhos com as sombrias tintas da normalidade. Hoje, soube que nosso padre já não prega nas paragens terrestres e, estranhamente, senti o meu dia oco e a paisagem do Pimenta sem o seu habitual verdor. Nem sequer sei o seu nome. Vou batizá-lo de Pedro, em homenagem àquele primeiro sacerdote que de pescador de peixes, viu-se na complexa missão de transformar-se em pescador de almas.

Os transeuntes sequer lhe davam atenção, o tinham por louco. Anestesiados pelo curare do cotidiano , crucificados nos ponteiros do relógio, passavam sem perceber o mundo que palpita e ferve à sua volta. Por outro lado, o nosso Pedro sequer olhava a inexistente multidão que deveria atentar para seu sermão, compenetrado, olhos analfabetos fitos no livro, continuava a celebrar o rito com uma aparência de plácida gravidade. Como se todos os fiéis deste mundo ouvissem devotos, e hipnotizados sorvessem sua pregação. Havia algo de profético naquela figura excêntrica que passava a manhã enchendo de verde o mundo e ainda se via impelido em semear o sagrado e difundir o mágico. Como um João Batista redivivo fez-se mais uma voz que clamava no deserto. Pregando fora do templo, como que buscava endireitar os caminhos do Senhor: fugir da pompa e da gala e procurar Deus no irmão que sofre na manjedoura e na criança faminta que chora na favela. Pregava de costas para o templo e de frente para o misterioso e enigmático mundo que se abria à sua frente.

Pedro talvez nem tenha percebido como são ínvias e espinhosas as veredas da profecia. João Batista simples, vestido em pele de animais, decapitado sem piedade por Salomé; Elias perseguido sem trégua e misteriosamente desaparecendo na sua carruagem de fogo e Isaías desacreditado e serrado ao meio com seus serafins. Todos encorpando o destino inflexível dos profetas: a incompreensão, a fama de louco, o martírio. Todos cientes também que montados no corcel do futuro falavam a incompreensível língua do porvir. E mais, que há bem mais verdade na sua pregação visionária do que nas palavras jogadas boca para fora por muitos filisteus travestidos de pastores. Aqueles mesmos que um dia já foram expulsos a chicotadas do templo, por venderem abertamente uma mercadoria que simplesmente não possuíam: a esperança.

J. Flávio Vieira

Um comentário:

  1. Há muito que esse blog não recebe uma crônica como essa. É mais do que oportuna uma reflexão sobre a perfídia dos falsos profetas, diante de tantos fatos absurdos considerados normais.
    Belo texto.
    abraços

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