sexta-feira, 6 de junho de 2008

Sífiso


Entrou em casa , à noite, como se trouxesse no corpo as feridas de uma batalha. Os dias todos pareciam uma xerox de um só . Trabalho repetitivo de tabelião de cartório, imerso no cofre da fina burocracia: escrituras, registros civis e de óbitos, reconhecimento de firmas. Olhava para aquele mundão de livros velhos e sobrenadava-lhe a certeza: ali , no cartório, estava depositada a vida perdida de várias gerações. Prazeres que não foram desfrutados, viagens que deixaram de ser feitas, felicidade enfim que acabou encarcerada em páginas esmaecidas, aguardando a sanha feroz dos inventários.O estranho é que, com o passar do tempo, aquela inutilidade armazenada nas prateleiras empoeiradas começou a inundar um pouco a sua própria existência, como se seu mundo, de alguma maneira, fosse sendo também aprisionado entre carimbos e certidões. O patrão, rígido, já tinha aquela cara esquisita de formato partilha. Até mesmo o descanso do domingo adquirira uma feição cartorial: ou Faustão ou Sílvio Santos. Sentia-se, como tantos dos seus clientes, um pouco órfão, ausente e interdito. Pois foi com aquela cara de arquivo morto que entrou em casa, por volta das 20 horas. Dirigiu-se para a mesa da sala em busca do jantar, já olhando , com o rabo do olho, a rede que o esperava atravessada na varanda. Estranhamente não viu pratos , nem talhares. Súbito, a mulher saiu do quarto e, sorridente, andou em sua direção. Estava maquiada, cabelo esticado às custas de uma escovinha de última hora e vestia um longo , preto, ainda com o cheiro da loja. Pensou, rapidamente, que ela devia estar voltando de alguma festinha da escola do filho. Com a barriga protestando, pediu-lhe que servisse o jantar. A esposa franziu o cenho , não deu palavra e retornou cabisbaixa, apagando os próprios passos . Ele recostou-se na rede e ficou imaginando o que poderia ter ocorrido: alguma fofoca de vizinha, um telefonema anônimo, alguma festa em casas de amigos ou na toca daquela jararaca da sua sogra, que havia esquecido ? Antes que chegasse a alguma conclusão, ouviu uns soluços secos que ressoavam a partir das paredes do quarto. Correu para lá e deu com a esposa aos prantos, sentada na cama, com a maquiagem já toda borrada. Que diabos estava acontecendo ? Achegou-se e perguntou, carinhosamente do que se tratava:
--- O que aconteceu ,Terezinha?Você está doente? Está sentindo alguma dor ?Levantaram algum falso contra mim ? Quer que eu lhe ajude a tirar esta roupa de festa ?
Terezinha , muda, apenas chorava convulsivamente e aumentava o tom do pranto, em uma oitava, a cada nova pergunta do marido. Em pouco , a patroa parecia um soprano interpretando uma ópera desconhecida. Ele achou mais sensato parar e voltar à rede da varanda onde tentou , sem êxito, descobrir o enigma. Adormeceu em meio ao cansaço e a fome e sonhou com uma terra em formato de almofada, assolada por uma tempestade de carimbos. Despertou cedinho e retornou para a tarefa de Sífiso. Não adiantava mexer com aquela sensitiva, ressonando ainda com o vestido da véspera na cama. Ao retornar, à noite, encontrou-a ainda trombuda e só , então, descobriu o erro fatal: esquecera seu aniversário de vinte anos de casado. A esposa o aguardara, ontem, para um jantar a luz de velas e algum presentinho que relembrasse a data. Passara batido. Tentou desculpar-se , sabendo de antemão que para tal crime não haveria perdão, não tinha sursis, era inafiançável : estaria condenado ad eternum .
Tentou minar aquele coração pétreo com afagos, com uma posição diferente na cama, com um almoço arrumado de última hora e um perfume francês. Mas tudo parecia exatamente o que era : uma tentativa vã de corrigir um erro imperdoável. Usou então o argumento derradeiro , deslocou-se até uma floricultura e encomendou um bouquê de rosas vermelhas , aquelas que trazem o cor flamejante da paixão . Junto anexou um cartãozinho dourado , com dois pombinhos ,aos beijos em um dos cantos, e sapecou a cantada em letra bonita, com seu linguajar de tabelião:
“ Para Terezinha,
Meu maior bem móvel.
Amo-te
O referido é verdade.
Dou Fé .
Osvaldo"

Depois das flores o clima melhorou um pouco, as coisas foram voltando para o devido lugar. . Qualquer briguinha , no entanto, qualquer arrufo e lá ressuscita o terrível pecado de omissão :
--- Você não lembra, não ? Até nosso aniversário de casamento você esqueceu ...
Aprendeu, tardiamente, que o coração feminino tem arquivos impecáveis e de facílimo acesso. O detalhismo está profundamente entranhado naquelas almas :Terezinha perdoou , mas não esqueceu. Osvaldo comprou agenda eletrônica, marca as datas importantes no calendário sobre seu bureau, usa até a Internet, temendo uma recorrência fatal no mesmo crime hediondo. Contratou até algumas testemunhas que possam falar a seu favor em casos mais melindrosos. Percebe, porém, que como na vida, nos livros de tombo do sentimento não é possível passar procuração e nem substabelecer.




Um comentário:

  1. Essa imagem me reportou a um poema , que eu copiei num caderninho :
    OS CISNES

    JÚLIO SALUSSE - Fluminense (1872-1948)

    A vida, manso lago azul, algumas

    vezes, algumas vezes mar fremente,

    tem sido, para nós, constantemente,

    um lago azul, sem ondas, sem espumas.



    Sobre ele, quando, desfazendo as brumas

    matinais, rompe um sol vermelho e quente,

    nós dois vagamos, indolentemente,

    como dois cisnes de alvacentas plumas.



    Um dia, um cisne morrerá, por certo:

    Quando chegar esse momento incerto,

    no lago, onde talvez a água se tisne,



    que o cisne vivo, cheio de saudade,

    nunca mais cante, nem sozinho nade,

    nem nade nunca ao lado de outro cisne!...

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