quarta-feira, 30 de julho de 2008

Mandem erguer uma estátua para Lampião

Ronaldo Correia de Brito
Do Recife (PE)

Festejaram bastante os setenta anos da morte de Lampião. Uma festa parecida com o louvor a um mito. Todos parecem esquecidos do medo em que viviam os estados nordestinos, nos anos em que o cangaceiro reinou. Em Serra Talhada, onde ele nasceu, até pensaram em erguer estátua. Pode? Se na França cultuam a memória de Napoleão, porque negar esse direito aos conterrâneos de Virgolino Ferreira da Silva?

No Houaiss, bandido é o indivíduo que pratica atividades criminosas; pessoa sem caráter, de maus sentimentos. E também assaltante, bandoleiro, cabra, celerado, larápio, malfeitor, salteador e por aí afora. Por mais que a literatura de cordel e o cinema novo tenham lapidado uma outra imagem de Lampião, ele será sempre um bandido. Por mais que os sociólogos de esquerda como Rui Facó analisem as causas do cangaço, vinculando-as à fome, ao isolamento, à miséria da região, ao coronelismo e à política latifundiária, mesmo assim os cangaceiros continuarão bandidos.

No Brasil, tendemos a transformar bandidos em heróis, a simpatizar com salafrários que burlam a lei, enriquecem com o crime e sobem na vida a qualquer custo. Nenhuma comoção nacional aconteceu com a prisão de Daniel Dantas e seus asseclas. Ninguém saiu às ruas para manifestar-se, nem houve ameaças de linchamento como no caso da menina Isabella. Crimes de corrupção, mesmo que cheguem à cifra de dois bilhões de reais, são abstratos demais para os brasileiros. Gostamos do espetáculo do sangue e da carnificina.

A história de Lampião é um exemplo de que o Brasil globalizado ainda guarda resquícios do Brasil rural. Em 1926, Virgolino, acompanhado de seu bando, visitou a cidade cearense de Juazeiro do Norte, para se encontrar com grandes proprietários de terras, A Liga dos Coronéis, e receber a bênção do Padre Cícero Romão Batista, o Padinho Ciço. Os políticos, os latifundiários, o clero e os bandidos juntos, parecido com hoje.

A simpatia por Lampião se deve ao poder que ele alcançou desafiando autoridades e poderosos. Suas façanhas alimentavam o imaginário das pessoas que também sonhavam em romper com a miséria sertaneja. Mas Lampião nunca foi um herói como o lendário Robin Hood, roubando dos ricos para ajudar aos pobres. Sua crueldade só fazia distinção com os fazendeiros que pagavam para não serem molestados, nem terem as propriedades invadidas. Eram os coiteiros, protetores de criminosos e passadores de informações. Tudo igualzinho a hoje.

Quando visitou Juazeiro, além de receber armamentos, munição e a bênção do Padrinho, Lampião foi incumbido de ir ao encontro da Coluna Prestes e atacá-la. Mas ele tomou um rumo contrário ao dos comunistas. Sua vida era de bandoleiro e não de político. É falso politizar suas façanhas. Brigas de família por disputa de terras eram comuns naquele nordeste agrário e medieval. A escolha de Lampião pelo cangaço se deu por vários motivos, e não apenas por ele ter presenciado a morte dos pais. Centenas de cangaceiros entraram na vida errante, e não passaram pelo mesmo trauma.

O romancista russo Dostoievski criou um personagem que justifica o crime de assassinato cometido por ele, comparando-se a Napoleão. Bonaparte levou centenas de milhares de pessoas à morte, pilhando e destruindo cidades em nome de um sonho imperialista. A história o transformou em herói. É possível que as gentes nordestinas tenham enxergado em Lampião não o imperador expansionista que converteu a França ao seu delírio, mas alguém capaz de um grande feito: inverter a ordem do medo e do terror, assumindo o lugar de tirano. Se abstrairmos os discursos políticos, Lampião e Napoleão são metais do mesmo quilate. Afinal, bandido é o indivíduo que pratica atividade criminosa, segundo Houaiss.

Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Escreveu Faca e Livro dos Homens.

Fale com Ronaldo Correia de Brito: ronaldo_correia@terra.com.br

Um comentário:

  1. Ouso discordar do texto abaixo, de autoria do Dr. Ronaldo Correia de Brito:

    "Em 1926, Virgolino, acompanhado de seu bando, visitou a cidade cearense de Juazeiro do Norte, para se encontrar com grandes proprietários de terras, A Liga dos Coronéis, e receber a bênção do Padre Cícero Romão Batista, o Padinho Ciço. Os políticos, os latifundiários, o clero e os bandidos juntos, parecido com hoje".

    MEU COMENTÁRIO:
    Padre Cícero encontrou-se, uma única vez, com Lampião em 1926. Todos os historiadores honestos informam que o Padre Cícero aconselhou Lampião a deixar o cangaço, e nunca lhe deu a patente de Capitão.
    Na verdade, Lampião veio a Juazeiro a convite do Deputado Floro Bartolomeu com o objetivo de ingressar no Batalhão Patriótico e combater a Coluna Prestes. É possível que Floro Bartolomeu tenha usado o nome do Padre Cícero para tal, sabendo que Lampião jamais recusaria um pedido do Padre Cícero.
    Por ironia, Dr. Floro não pôde receber Lampião e seu bando, pois já se encontrava no Rio de Janeiro para onde fora doente, chegando a falecer, coincidentemente, na época em que o famoso cangaceiro visitou Juazeiro.
    Como insistia em receber a patente de Capitão prometida - por Dr. Floro e não por Padre Cícero - o fotográfo e pessoa influente em Juazeiro, Sr. Benjamim Abraão, convenceu Dr. Pedro de Albuquerque Uchoa, único funcionário público federal residente em Juazeiro, a assinar um documento (por eles mesmos forjado) concedendo a famigerada patente, que tantos aborrecimentos trouxe ao Padre Cícero, a quem desavisados escritores atribuem a autoria.
    A verdade é que, mais tarde, Dr. Uchoa foi chamado a Recife para se explicar junto às Forças Armadas sobre a concessão da patente, e ele, naturalmente temendo ser punido, não encontrou outra solução senão atribuir tudo ao Padre Cícero, certo de que ninguém seria capaz de repreender aquele virtuoso e respeitado sacerdote. Quem conheceu a índole do Padre Cícero, como a escritora Amália Xavier de Oliveira (de quem ouvi os fatos acima relatados) sabe perfeitamente que ele (Padre Cícero) seria incapaz de praticar ato tão abjeto.

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