domingo, 3 de agosto de 2008






Blues direto no coração

Esse é um disco que teria tudo para soar como mais uma armação de gravadora, uma vez que foi lançado após a saída de Coltrane do selo Atlantic. “Coltrane Plays The Blues”, é o resultado de sobras de estúdio do disco “My Favorit Things”, de 1961. Mas um músico da envergadura de Coltrane jamais gravaria qualquer tipo de armação. O material todo foi gravado em 1960, tendo sido lançado só em 1962, no formato de um disco só de blues.

Nesse disco John Coltrane toca um repertório autoral, sendo acompanhado por nada menos do que Elvin Jones na bateria, um dos maiores bateristas de todos os tempos, pela sua precisão e originalidade, coisa rara em um mar de diluições sonoras. Além de McCoy Tyner no piano, Coltrane conta com o baixista Steve Davis, para fazerem a cama necessária para o desfile de suas experiências modais, estilo depois amplamente copiado por uma enxurrada de músicos sem criatividade, espalhados por esse mundão sem cancelas.

Esse é um disco que toca o coração. É para ser ouvido a qualquer hora. Mas nada como um cair de tarde ou mesmo uma madrugada tranqüila, para que a magia desse gênio possa ser experimentada integralmente. O disco original conta com seis faixas essencialmente clássicas. Coltrane toca soprano nas faixas Blues to Bechet e Mr. Syms. Em Blues to Bechet, Coltrane presta uma oportuna homenagem a um dos pioneiros no sax soprano o genial Sidney Bechet, que o estimulou a fazer um verdadeiro ressurgimento do soprano para o jazz.

Já o relançamento remasterizado do disco traz cinco faixas a mais, são tomadas alternativas de Blues to Elvin, Blues to You e uma faixa sem título original, batizada por Exotica. Todas as faixas são simplesmente demais. Quando você tem realmente um músico original tocando para você, pode ter certeza que você está perto do céu. Esse é o caso de “Coltrane Plays The Blues”. Nesse disco ele demonstra sentimento e técnica, sem abandonar jamais a ousadia em seus improvisos.

O disco abre com Blues to Elvin, uma faixa com andamento lento, em que Coltrane começa o seu trabalho de hipnose do ouvinte. É fechar os olhos e viajar profundamente por outras paragens. São poucos os músicos que têm essa magia de fazer você entrar em órbita. Muitos têm habilidade técnica, mas pouco tem o poder do teletransporte. A segunda faixa, Blues to Bechet, é outro mantra, sem o piano de MacCoy Tyner, é um trabalho de Elvin Jones histórico.

A terceira faixa é um verdadeiro clássico. Blues to You, também não tem o piano de MacCoy Tyner, mas tem um trio simplesmente inspirado, com Coltrane tirando harmônicos do seu tenor e despejando frases por segundo, em grande improviso. Uma verdadeira visão particular dos modos gregos. Em Mr. Day, Coltrane apresenta a sua pegada típica das casas noturnas, cheia de improvisos alucinados e interessante trabalho com o mixolídio e uma série de escalas menores. Mais uma vez o duelo entre o tenor e a bateria torna-se história.

Depois vem outro mantra, Mr. Syms, com uma das melodias mais bonitas do repertório de Coltrane. Um tema simples, cheio de sentimento, com um Coltrane visivelmente influenciado pela música indiana. Imperdível. Um solo de piano invocado. Solos de soprano abstratos. Música por excelência. O disco original fecha com Mr. Knight, a faixa que tem mais influências de outras levadas, que pode ser definida como uma pegada latina-afro. Outra faixa memorável.

“Coltrane Play The Blues” é um dos discos mais importantes desse músico genial do jazz universal, que está colocado entre os grandes, como Miles Davis, Charles Mingus, Thelonious Monk e Charlie Parker. Coltrane tocou com inúmeros músicos e estudou diversos compositores, mas apresentou um estilo próprio, a sua marca, que ao longo dessa incansável estrada da música, foi diluída por inúmeros músicos sem originalidade.

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