sexta-feira, 1 de agosto de 2008

CANGACEIROS ALADOS



Leitores, vou terminar
Tratando de Lampião
Muito embora que não posso
Vos dar a resolução

No inferno não ficou
No céu também não chegou
Por certo está no sertão

José Pacheco da Rocha (1890-1954)

Finalzinho dos anos 50. Instituto Médico Legal Nina Rodrigues em Salvador, na Bahia. Um menino peralta, indomável no alto de seus seis anos, manquitolando, com uma longa bota ortopédica atada ao pé direito, aproxima-se destemidamente da vitrine. À sua frente uma imagem inesquecível e bárbara: as cabeças degoladas de Lampião, Maria Bonita e dos cangaceiros : Quinta-feira, Luiz Pedro, Mergulhão, Elétrico, Enedina, Cajarana, Tem

pestade e Marcela. O meninozinho caririense, em tratamento ortopédico na capital baiana, não titubeou. Como havia prometido ao pai, antes da viagem, postou-se diante dos guerreiros decapitados e bateu continência.

Já lá se vão setenta anos da queda definitiva do Capitão Virgulino e seu bando e exatamente meio século do gesto de reverência militar do menino ruivo e meio saci que hoje escreve estas linhas. Após o fogo de 28 de Julho de 1938, em Angicos, os onze guerreiros que fizeram parte do mais arrojado bando guerrilheiro nordestino, que varreu os sertões por quase vinte anos, abatidos, terminaram todos sendo decapitados. Suas cabeças passaram a ser expostas sob o pretexto que serviriam de cobaias científicas , se estudando possíveis degenerescências lombrosianas. E assim permaneceram até 1969, quando sob pressão do Dr. Sylvio Hermano de Bulhões, filho de Corisco e Dadá, este mobilizou a opinião pública para que pusessem fim à exposição bárbara dos restos mortais dos principais

expoentes do ciclo épico do cangaço no século 20. Os aniversários são sempre propícios à reflexão, hoje, sentada a poeira dos eventos épicos dos anos 30, há condições de se enxergar melhor.

A primeira questão diz respeito à exposição indigna dos restos mortais dos cangaceiros por mais de trinta anos. A justificativa científica rapidamente cai por terra à medida que as teorias criminalísticas de Cesare Lombroso começaram a cair por terra após os anos 50. A exposição bárbara das cabeças demonstrou, claramente, ser apenas um ato vingativo dos vencedores, no sentido de mostrarem a todos as suas presas. Não diferente do que se viu no esforcamento-esquartejamento de Tiradentes , nos jogos de futebol com a cabeça dos vencidos perpretados pelo romanos e pelos bárbaros e, mais recentemente, na exposição pela mídia colombiana do corpo ensangüentado do guerrilheiro Raul Reyes. Expõem-se , indignamente, os corpos dos abatidos, como um caçador apõe a cabeça empalhada do tigre,caçado no safári, na sua sala de jantar.

Lampião, com o tempo, foi se travestindo numa figura mitológica: meio herói, meio bandido, meio anjo meio belzebu. Idolatrado por alguns, execrado por tantos outros, tem se mantido nesta dubiedade mítica intimamente imersa na alma do povo brasileiro. Essa presença tão forte talvez advenha da impossibilidade de alguém se manter neutro ao ouvir sua história, ao ver cantados seus feitos. O escultor Zé do Carmo , de Goiana em Pernambuco, intuitivamente percebeu o anverso-reverso da medalha e esculpiu em barro um sem número de cangaceiros alados. Como julgar uma pessoa que pelas vicissitudes da vida viu-se , de repente, jogado na caatinga, lutando por uma causa que ele próprio já ignorava e acossado dia e noite, por quase vinte anos, pelas patrulhas de macacos ? Como sobreviver na selva sem aprender as astúcias da raposa e a selvageria das aves de rapina ?

A saga do Capitão Virgulino Ferreira na sua multiplicidade interpretativa, demonstra uma outra duplicidade de origem. Como em Canudos e no Caldeirão, a nação demonstrou, claramente , as duas arestas de que é composta. Um país que poderia se chamar de Holandesh : de um lado um povo rico, próspero e desfrutando de um paraíso terrestre, uma espécie de Holanda; do outro 80% de uma população que sobrevive de bicos e que não tem garantido o almoço de cada dia, morando numa espécie de Blangadesh. Como lembrou o nosso Machado de Assis e reafirma a cada dia o gênio da raça Ariano Suassuna, há estes dois Brasis um real e outro oficial. De vez em quando, na nossa história, a Holanda busca dizimar , com vergonha, a Blangadesh. Com Lampião foi assim , mais uma vez tentaram cortar a cabeça da serpente, sem entender que se tratava de uma Medusa. Hoje o cangaço deixou a caatinga e está nas ruas, nos morros, nas favelas. Os novos Virgulinos se multiplicaram e respondem pelo nome de Fernandinho Beira-Mar, Lulu da Rocinha, Cecelo,Coelho, Marcelo PQD. A aresta holandesa deste país continua mantendo seu paraíso a custa de escândalos e falcatruas: mensalões, sanguessugas, Satiagahas. Em meio ao tiroteio, padecem culpados e inocentes. Muitas e muitas cabeças ainda serão cortadas e expostas ,Brasil afora, para dar uma sensação de falsa tranqüilidade. Angicos, a queda do Arraial de Canudos, as chacinas da Candelária, do Caldeirão e do Carandiru são medidas inócuas. Enquanto o Brasil carregar a Holanda e Blangadesh tão próximos, o cangaço não terá sido extinto.

A imagem de tantas cabeças sem o corpo terminaram por fazer a cabeça do meninozinho ruivo. E , por isto mesmo, hoje, cinqüenta anos depois , ele aqui está novamente batendo continência para o Capitão Virgulino Ferreira da Silva.

J. Flávio Vieira


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