Eraserhead, o bizarro
Que não se consegue apagar
A recente edição em dvd do primeiro longa-metragem de David Lynch, “Eraserhead” é muito mais que oportuna, enquanto peça fundamental para o entendimento daquilo que parece incompreensível a uma primeira leitura: o universo bizarro de David Lynch, em película e fora dela.
Esse filme tem várias vertentes fundantes. Cheio de traços pessoais, um período cheio de turbulências, um mestre em sua luta contra as teses canônicas, e uma busca por uma estética imantada, que só precisava de práxis, servem para dar ao espectador, elementos que ele possa reconstruir aquilo que o autor tenta desconstruir ao longo de sua carreira cinematográfica.
Essa edição trás um David Lynch consagrado, revelando e velando facetas em um significativo comentário-depoimento sobre o seu primeiro longa, alocado como extra. Tão importante, para os alucinados por ele, quanto o próprio filme. Essa é uma outra peça de arte. Duas em uma embalagem só. Nesse depoimento o autor não faz referência nenhuma à sua experiência particular de ter sido pai precocemente, e que o filho nascera com deformação nos pés. O casal de “Eraserhead” também tem um filho inesperado, um ser mutante. Mas aí são outros quinhentos.
É gratificante ver o tratamento dado pelo autor a esse anexo. Quando David Lynch encerra o depoimento afirmando que nenhum crítico ou qualquer outra pessoa do seu conhecimento fez uma interpretação do filme parecida com o que ele acha, sem revelar o que acha sobre o próprio filme, ali nós temos a reificação do universo cinematográfico desse mestre da escatologia humana. Nada se resolve, apenas o espanto.
David Lynch trabalha com o estranhamento, técnica de composição textual que ele transporta semioticamente para as montagens dos seus enredos. Em seu livro “Olhos de Madeira”, mais precisamente no artigo “Estranhamento, pré-história de um procedimento literário”, o filósofo italiano Carlo Ginzburg, entre outras teses sobre esse recurso, cita o escritor russo Chklovski, que justifica a quebra da linearidade discursiva como uma forma de se aprofundar na realidade, devido ao peso dos hábitos inconscientes, que automatizam tudo, o que é real e o que é irreal.
É isso que David Lynch faz. Quebra o discurso através do estranhamento, das alegorias, da descontinuidade, da fragmentação e da circularidade, para que o espectador seja jogado em uma urgência de compreensão. Assim ele vai desfilando os seus ícones e símbolos de uma decadência contemporânea, dentro e fora do ser, sem respeitar necessariamente as concepções de possível e impossível.
“Eraserhead” é a história fragmentada de Henry, que tem a notícia de que é pai precocemente e que seu filho é um mutante. Logo Henry é rejeitado pela própria namorada e passa a conviver brevemente com os seus infortúnios, dividindo o seu apertado apartamento com alucinações, entidades espirituais e um cotidiano povoado de máquinas e objetos, completamente despovoado de humanismo.
Pode-se afirmar que “Eraserhead”, a partir do título, é a saga do não ser. O cenário é árido, industrial, com traços de urbanidade e uma vaga noção de família, que não consegue coagular o seu intenso desequilíbrio mental, espiritual e existencial. A cena do jantar em que Henry visita a família da namorada é uma verdadeira peça suprema da escatologia humana, da loucura, da ignorância espiritual e da fragmentação da realidade.
David Lynch é um fabricante de universos particulares. Às vezes claustrofóbico, às vezes em pleno devaneio libertino. Mas sobretudo, David Lynch é o poeta da alma humana, em toda a sua pungência de abismos. Todos os elementos metafísicos e metalingüísticos de David Lynch estão lá, em “Eraserhead”: os espelhos; a vacuidade; as entidades espirituais; o palco; a prostituição existencial; a busca pelo amor; o desperdício da vontade; a trilha sonora concreta e experimental; o devaneio; o pesadelo; a solidão humana e a condição inconteste do indivíduo não ter controle algum sobre a existência.
Assista e tenha um excelente espanto.
Que não se consegue apagar
A recente edição em dvd do primeiro longa-metragem de David Lynch, “Eraserhead” é muito mais que oportuna, enquanto peça fundamental para o entendimento daquilo que parece incompreensível a uma primeira leitura: o universo bizarro de David Lynch, em película e fora dela.
Esse filme tem várias vertentes fundantes. Cheio de traços pessoais, um período cheio de turbulências, um mestre em sua luta contra as teses canônicas, e uma busca por uma estética imantada, que só precisava de práxis, servem para dar ao espectador, elementos que ele possa reconstruir aquilo que o autor tenta desconstruir ao longo de sua carreira cinematográfica.
Essa edição trás um David Lynch consagrado, revelando e velando facetas em um significativo comentário-depoimento sobre o seu primeiro longa, alocado como extra. Tão importante, para os alucinados por ele, quanto o próprio filme. Essa é uma outra peça de arte. Duas em uma embalagem só. Nesse depoimento o autor não faz referência nenhuma à sua experiência particular de ter sido pai precocemente, e que o filho nascera com deformação nos pés. O casal de “Eraserhead” também tem um filho inesperado, um ser mutante. Mas aí são outros quinhentos.
É gratificante ver o tratamento dado pelo autor a esse anexo. Quando David Lynch encerra o depoimento afirmando que nenhum crítico ou qualquer outra pessoa do seu conhecimento fez uma interpretação do filme parecida com o que ele acha, sem revelar o que acha sobre o próprio filme, ali nós temos a reificação do universo cinematográfico desse mestre da escatologia humana. Nada se resolve, apenas o espanto.
David Lynch trabalha com o estranhamento, técnica de composição textual que ele transporta semioticamente para as montagens dos seus enredos. Em seu livro “Olhos de Madeira”, mais precisamente no artigo “Estranhamento, pré-história de um procedimento literário”, o filósofo italiano Carlo Ginzburg, entre outras teses sobre esse recurso, cita o escritor russo Chklovski, que justifica a quebra da linearidade discursiva como uma forma de se aprofundar na realidade, devido ao peso dos hábitos inconscientes, que automatizam tudo, o que é real e o que é irreal.
É isso que David Lynch faz. Quebra o discurso através do estranhamento, das alegorias, da descontinuidade, da fragmentação e da circularidade, para que o espectador seja jogado em uma urgência de compreensão. Assim ele vai desfilando os seus ícones e símbolos de uma decadência contemporânea, dentro e fora do ser, sem respeitar necessariamente as concepções de possível e impossível.
“Eraserhead” é a história fragmentada de Henry, que tem a notícia de que é pai precocemente e que seu filho é um mutante. Logo Henry é rejeitado pela própria namorada e passa a conviver brevemente com os seus infortúnios, dividindo o seu apertado apartamento com alucinações, entidades espirituais e um cotidiano povoado de máquinas e objetos, completamente despovoado de humanismo.
Pode-se afirmar que “Eraserhead”, a partir do título, é a saga do não ser. O cenário é árido, industrial, com traços de urbanidade e uma vaga noção de família, que não consegue coagular o seu intenso desequilíbrio mental, espiritual e existencial. A cena do jantar em que Henry visita a família da namorada é uma verdadeira peça suprema da escatologia humana, da loucura, da ignorância espiritual e da fragmentação da realidade.
David Lynch é um fabricante de universos particulares. Às vezes claustrofóbico, às vezes em pleno devaneio libertino. Mas sobretudo, David Lynch é o poeta da alma humana, em toda a sua pungência de abismos. Todos os elementos metafísicos e metalingüísticos de David Lynch estão lá, em “Eraserhead”: os espelhos; a vacuidade; as entidades espirituais; o palco; a prostituição existencial; a busca pelo amor; o desperdício da vontade; a trilha sonora concreta e experimental; o devaneio; o pesadelo; a solidão humana e a condição inconteste do indivíduo não ter controle algum sobre a existência.
Assista e tenha um excelente espanto.
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