sábado, 16 de agosto de 2008


Narani serve suco de nada em jarras escuras. Fala de sorvetes. Coisas geladas fabricadas no país dos eunucos. Dão medo. Dão sede. Dão vontade. Narani fala que a estrada é lenda. E que atalhos são mentiras. Diz: existe lua? Não existe. Aquilo é o olho único do unicórnio que criou isso tudo. Pergunta: tem dinheiro? Tem? Estende a toalha de crochê na calçada matizada. Castiçais de plástico. Incensos. Cabeças de boneca. Velas tristes. Apagadas. Narani diz da mágica das velas apagadas. Do medo de acende-las. Fala de um jantar macrobiótico. De sua infância primeira. De masturbação e pecados deliciosos. Mas isso é apenas um jantar. Narani sabe. Talvez o último. Um fio de baba escorre no seu queixo antigo e belo. Narani não tem idade. Conta que comeu coisas que não existem mais. Que bebeu refrigerantes sumidos nos baús da memória coletiva. A vida é só um dos tabletes doces no tabuleiro de Narani. Narani diz que a canção que ela mais gostou na sua vida era uma propaganda de chicletes. Mas ela não lembra a letra. Cantarola: nã na nana, nara rara ra. Ninguém sabe. Ninguém conhece. Narani diz que batizou todos os seus dentes: quando eles caiam, ela os batizava e enterrava no jardim. Lembra de todos. Mas não quer mais falar nisso. Ela nos conta que sempre detestou os arranha céus. Talvez pelo contexto da palavra. Ela não imagina alguém arranhando o céu. – isso tem conseqüência! Conta que sempre gostou de insetos. Que eles foram suas companhias mais fiéis. Sempre gostou das borboletas kamikazes. Voando ensandecidas para a luz. Pela luz. Ela diz que a gente é igualzinho. Que se fode. Mas bate a cabeça na direção da luz. Diz que um dia amou um guarda noturno. Pelo som do apito. Um dia o guarda mudou. Conta que notou. Pelo som do apito. Chorou. Depois casou com um palhaço de circo. Gostava de rir. O palhaço um dia sumiu. Deixou um estojo de maquiagem. Meia carteira de cigarros. Um pé de meia azul com bolinhas amarelas. Narani diz que só notou dois anos depois. Quando morreu pela terceira vez.

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