Quero escrever o borrão vermelho de sangue
Quero escrever o borrão vermelho de sangue
com as gotas e coágulos pingando
de dentro para dentro.
Quero escrever amarelo-ouro
com raios de translucidez.
Que não me entendam
pouco-se-me-dá.
Nada tenho a perder.
Jogo tudo na violência
que sempre me povoou,
o grito áspero e agudo e prolongado,
o grito que eu,
por falso respeito humano,
não dei.
Mas aqui vai o meu berro
me rasgando as profundas entranhas
de onde brota o estertor ambicionado.
Quero abarcar o mundo
com o terremoto causado pelo grito.
O clímax de minha vida será a morte.
Quero escrever noções
sem o uso abusivo da palavra.
Só me resta ficar nua:
nada tenho mais a perder
Quem se atreve a definir esta mulher? Enigmática, para Antônio Callado. Um mistério, para Carlos Drummond de Andrade. Insolúvel, para o jornalista Paulo Francis. Ela não fazia literatura, mas bruxaria, disse Otto Lara Resende.
Em maio de 1976, o jornalista José Castello, colaborador de O Globo, recebe a missão de entrevistar Clarice Lispector. Corre boato de que ela não quer mais saber de entrevistas, mas Castello consegue o encontro. Dialogam:
J.C. - Por que você escreve?
C.L. - Vou lhe responder com outra pergunta: - Por que você bebe água?
J.C. - Por que bebo água? Porque tenho sede.
C.L. - Quer dizer que você bebe água para não morrer. Pois eu também: escrevo para me manter viva.
Investigada por pesquisadores apaixonados no mundo todo, Clarice é uma das mais cultuadas escritoras brasileiras. Para muitos, das mais importantes do século 20, no mundo.
Clarice nasceu na aldeia Tchetchelnik, Ucrânia, que de tão pequena nem figura no mapa, em 10 de dezembro de 1920, quando os pais Pedro e Marieta, junto das filhas Elisa e Tânia, estavam emigrando para o Brasil. Pararam naquele lugar apenas para Clarice nascer. Com dois meses de vida desembarcava com a família em Maceió, onde viveu por três ou quatro anos. Mudam depois para o Recife. Em 1929, aos nove anos, perdeu a mãe.
Guardo de Pernambuco até o sotaque. Quem vive ou viveu no Norte tem uma fortuna de ser brasileiro muito especial.
A menina já escrevia suas historietas, sempre recusadas pelo Diário de Pernambuco, que mantinha uma página infantil, porque elas não tinham enredo e fatos - apenas sensações. Adolescente, segue com o pai e as irmãs para o Rio de Janeiro. Termina o secundário. Dá aulas de português para contornar a crise financeira da família. Entra na Faculdade Nacional de Direito em 1939. No ano seguinte perde o pai. Trabalha como redatora no jornal A noite, onde publica contos. Em 1943, casa com o diplomata Maury Gurgel Valente.
Entre muitas leituras, lia Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Machado de Assis, Dostoievski "embora não o aprendesse em toda a sua grandeza" e descobriu por acaso Katherine Mansfield à qual foi equiparada posteriormente.
Perto do coração selvagem, o primeiro romance, escrito aos 19 anos é publicado apenas em 1944. A jovem revelação desnorteia a crítica. Há os que buscam influências, invocam certo temperamento feminino. Outros não a entendem.
Não sei o que quero e, quando descobrir, não preciso mais. Acho que quero entender. Quando escrevo, vou descobrindo, aprendendo. É um exercício de aprendizagem da vida.
Viveu em vários países, acompanhando o marido. Nápoles, Berna, Washington se revezam com passagens pelo Brasil. A vida de mulher de diplomata não lhe agradava. De Paris, em janeiro de 1947, escreve às irmãs:
Com a vida assim parece que sou "outra pessoa" em Paris. É uma embriaguez que não tem nada de agradável. Tenho visto pessoas demais, falado demais, dito mentiras, tenho sido muito gentil. Quem está se divertindo é uma mulher que eu detesto, uma mulher que não é a irmã de vocês. É qualquer uma.
No exterior lhe nascem os dois filhos, Pedro e Paulo. Mãe, Clarice divide-se entre as crianças e a literatura, escrevendo com a máquina apoiada nas pernas enquanto cuida de seus pequenos.
Separada do marido em 1959, volta ao Rio de Janeiro com os filhos. Mais um período de dificuldades afetivas e financeiras apesar de já ser escritora famosa com obras publicadas no exterior. Nesta época publica contos encomendados por Simeão Leal na revista Senhor. Em toda a década de 1960, colabora em vários jornais e revistas para sobreviver, faz traduções. Em 1969, já era autora de obras importantes como O lustre (romance, 1946); Laços de família (contos, 1960); A maçã no escuro (romance, 1961); A paixão segundo G.H. (romance, 1964); Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (romance, 1969). Incomodava-se com sua mitificação: Muito elogio é como botar água demais na flor. Ela apodrece.
Clarice morreu de câncer em 9 de dezembro de 1977, um dia antes de completar 57 anos. Meses antes concedeu célebre entrevista a Júlio Lerner, da TV Cultura. Ela acabava de terminar A hora da estrela. Escrever era vital para a misteriosa Clarice. Na última entrevista confessava: "Quando não escrevo, estou morta".
Em 1975, convidada a participar do Congresso Mundial de Bruxaria na Colômbia, limitou-se à leitura do conto O ovo e a galinha, um conto que não compreendia muito bem, declarou. Na década de 1990, o escritor Otta Lara Resende advertiu José Castello, que escrevia biografia de Clarice: "Você deve tomar cuidado com Clarice. Não se trata de literatura, mas de bruxaria".
Ai , que maravilha !
ResponderExcluirVocê, Socorro Moreira, é, como Clarice, uma maravilhosa bruxa!
ResponderExcluirEspero que tua flor não apodreça se eu disser que a autora - o principal do texto - ficou perdida no meio de uma percepção última: tua tentativa, o debruçar-se sobre o que a tua alma queria dizer e precisa,...o trabalho, as colagens, as aspas, a pesquisa em si,...disse de modo sutil, tão sutil, querido, a mensagem subliminar deu de beber à minha florzinha sem afogá-la. Exulto quando me sinto amada e cativada..."A boca fala do que o coração está cheio", gosto disso, é um provérbio bíblico.
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