O Curtume Aimoré tornara-se um dos mais importantes de todo estado. Fincado na capital espalhara, pouco a pouco, representantes comerciais por todo o interior, com o fito de comprarem peles que, após o processo inicial de salga , eram enviados à matriz para a continuação do beneficiamento dos couros: remolho, depilação, caleiro, desencalagem, acidificação e curtimento. Zenildo Catonho especializara-se neste ramo e, periodicamente, cobria toda a região de Matozinho e adjacências no intuito de classificar couros e comprá-los para o Curtume Aimoré. Sua chegada era esperada com alguma ansiedade na Vila. Primeiro ele trazia consigo a esperança de alguma renda suplementar para a população rural, máxime em época de seca, quando a mortandade de bichos mostrava-se sempre assustadora e couro esticado por tudo quanto é lado, fazia-se quase uma bandeira deste sertãozão de meu Deus. Depois, Catonho se fora tornando uma figura bastante querida na cidade por conta de um outro lado seu: o da boêmia. Trabalhava no seu mister todo o dia, mas a noite dedicava caprichosamente à rua do Caneco Amassado onde examinava cuidadosamente outras peles bem mais cheirosas e macias e, também, perfeitamente negociáveis. Profissionalmente, no entanto, sempre se apresentava extremamente criterioso e classificava os couros com um rigor impressionante. A Aimoré o tinha na mais alta conta e, ao longo dos anos, se foi transformando num funcionário padrão.
Semana passada, Zenildo chegou em Matozinho e montou, como sempre, o escritório numa das dependências da Botica de Janjão Cataplasma. Para lá peregrinaram muitos matutos com couros para serem classificados e vendidos. Zé Capivara , uma das línguas mais afiadas de Matozinho, fazia a limpa de um pequeno roçado no sopé da Serra da Jurumenha quando viu Saturnino Cafimfim todo fiota, passando na estrada com um couro enrolado, embaixo do braço. Não se conteve:
--- Ei Cafifim, pra onde ta se botando , homem de Deus ?
--- To indo pra Matozinho, vender este courinho de um veado que matei mês retrasado... A coisa ta preta, uma seca danada... O couro tá inteirinho e acho que dá primeira...
Tardizinha, Capivara deu com Cafimfim fazendo o caminho de volta... apenas menos entusiasmado do que na ida, com um ar de Sá-Marica-Comeram-meu-milho.
--- E aí, Cafimfim, negociou o couro ?
--- Vendi, vendi, só que o rapa de sola do Zenildo classificou o bicho como terceira, só por causa de uns furinhos de nada de chumbo de soca-soca... Atrás de pobre corre uma onça, não apurei quase nada...
Enquanto Cafimfim desaparecia , cabisbaixo, na curva extrema da estrada, Zé Capivara murmurou entre dentes:
--- Ora, se nem o couro desse povim de Matozinho dá primeira, quanto mais couro de viado...
À noite , Zenildo estava estabelecido no Cabaré de Maria Justa, mais alegre e solto que pinto em monturo. Aquele dia , historicamente, era muito especial: aniversário da mais querida e reverenciada cafetina de Matozinho. Festa para varar a noite e furar as tripas da madrugada. Lá já estava, a postos , a orquestra sinfônica de Matozinho: o pé-de-bode de Geracino pandeiro de Tiê e do zabumba de Tiziu. A casa se encontrava completamente repleta. D. Maria Justa , radiante, envergava um longo cor de jerimum, cheio de penduricalhos por tudo quanto era relevo. A maquiagem, carregadíssima , faria inveja ao Carequinha. As meninas , espalhadas pelo salão, com seus melhores e mais farfalhantes vestidos, sorriam sorrisos menos artificiais do que os do dia-a-dia. A dança rolava solta no salão principal, com a liberalidade e a soltura imprescindíveis ao roça-roça de corpos. Zenildo, um dançarino do melhor jaez, sabia bem a regra geral: todo bom dançarino aprendeu sua arte no cabaré.
No melhor da festa, por volta de uma hora da manhã, todos mais melados que macacão de mecânico, Feitozinha do Correio entra na Boate à procura de Zenildo. Encontra-o descansando em uma mesa, entre uma e outra dança, com Das Virgens acomodada, sensualmente, no seu colo. A entrada de Feitozinha , àquela hora, jogou uma ducha de água fria na fervura do ambiente. Todos pensaram no pior, principalmente quando viram nosso carteiro entregar um telegrama, nas mãos de Catonho, chegado há pouco e lavrado em código Morse. A orquestra parou, os bêbados fizeram um minuto de silêncio , enquanto Zenildo desfolhava o telegrama com ar algo preocupado. Conteve-se ao ler as palavras encaminhadas por sua mulher:
“ Mamãe teve um colapso PT Morreu hoje PT
Abigail”
De repente, nosso curtumista fitou a todos e com um sorriso nos lábios, e concluiu :
--- Não é nada não, pessoal, só cotação de couro de bode ! Toca a festa Geracino !
Semana passada, Zenildo chegou em Matozinho e montou, como sempre, o escritório numa das dependências da Botica de Janjão Cataplasma. Para lá peregrinaram muitos matutos com couros para serem classificados e vendidos. Zé Capivara , uma das línguas mais afiadas de Matozinho, fazia a limpa de um pequeno roçado no sopé da Serra da Jurumenha quando viu Saturnino Cafimfim todo fiota, passando na estrada com um couro enrolado, embaixo do braço. Não se conteve:
--- Ei Cafifim, pra onde ta se botando , homem de Deus ?
--- To indo pra Matozinho, vender este courinho de um veado que matei mês retrasado... A coisa ta preta, uma seca danada... O couro tá inteirinho e acho que dá primeira...
Tardizinha, Capivara deu com Cafimfim fazendo o caminho de volta... apenas menos entusiasmado do que na ida, com um ar de Sá-Marica-Comeram-meu-milho.
--- E aí, Cafimfim, negociou o couro ?
--- Vendi, vendi, só que o rapa de sola do Zenildo classificou o bicho como terceira, só por causa de uns furinhos de nada de chumbo de soca-soca... Atrás de pobre corre uma onça, não apurei quase nada...
Enquanto Cafimfim desaparecia , cabisbaixo, na curva extrema da estrada, Zé Capivara murmurou entre dentes:
--- Ora, se nem o couro desse povim de Matozinho dá primeira, quanto mais couro de viado...
À noite , Zenildo estava estabelecido no Cabaré de Maria Justa, mais alegre e solto que pinto em monturo. Aquele dia , historicamente, era muito especial: aniversário da mais querida e reverenciada cafetina de Matozinho. Festa para varar a noite e furar as tripas da madrugada. Lá já estava, a postos , a orquestra sinfônica de Matozinho: o pé-de-bode de Geracino pandeiro de Tiê e do zabumba de Tiziu. A casa se encontrava completamente repleta. D. Maria Justa , radiante, envergava um longo cor de jerimum, cheio de penduricalhos por tudo quanto era relevo. A maquiagem, carregadíssima , faria inveja ao Carequinha. As meninas , espalhadas pelo salão, com seus melhores e mais farfalhantes vestidos, sorriam sorrisos menos artificiais do que os do dia-a-dia. A dança rolava solta no salão principal, com a liberalidade e a soltura imprescindíveis ao roça-roça de corpos. Zenildo, um dançarino do melhor jaez, sabia bem a regra geral: todo bom dançarino aprendeu sua arte no cabaré.
No melhor da festa, por volta de uma hora da manhã, todos mais melados que macacão de mecânico, Feitozinha do Correio entra na Boate à procura de Zenildo. Encontra-o descansando em uma mesa, entre uma e outra dança, com Das Virgens acomodada, sensualmente, no seu colo. A entrada de Feitozinha , àquela hora, jogou uma ducha de água fria na fervura do ambiente. Todos pensaram no pior, principalmente quando viram nosso carteiro entregar um telegrama, nas mãos de Catonho, chegado há pouco e lavrado em código Morse. A orquestra parou, os bêbados fizeram um minuto de silêncio , enquanto Zenildo desfolhava o telegrama com ar algo preocupado. Conteve-se ao ler as palavras encaminhadas por sua mulher:
“ Mamãe teve um colapso PT Morreu hoje PT
Abigail”
De repente, nosso curtumista fitou a todos e com um sorriso nos lábios, e concluiu :
--- Não é nada não, pessoal, só cotação de couro de bode ! Toca a festa Geracino !
J. Flávio Vieira
JFlávio, genial, adorei o título, de imediato, adorei a relação dos estereótipos com o contexto muito bem situado, foste lá no abstrato, bárbaro. Cada um preza sua arte, nesses últimos tempos a arte vestiu-se até de caprinos no substrato de um romande inventado, lunático e pulverizado por estrelas. Nesse céu inventado por um Mago Salatiel não há estrelas cadentes, todas muito hábeis pegam logo uma cauda de cometa e ninguém cai. Que bom! Ganhamos todos, até eu a caçula, abraços e parabéns pelo texto.
ResponderExcluirObrigado à Marta por ter gostado de um texto tão singelo e naturalista. Sempre imaginei que no fundo a gente sempre escreve para n´so mesmo, mas é ótimo quando conseguimos tocar os outros, principalmente alguém com sua sensibilidade.
ResponderExcluir