quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Inventário de Bens e de Sonhos

A quem pertencem, realmente, as coisas deste mundo? Permitam-me, caros leitores, esta pergunta algo filosófica, num sábado à tarde, dia e hora propensas mais à descontração, à rede e à preguiçosa. Mas, vamos lá, perdoem-me a esfinge desta interrogação, num final de semana : A quem , realmente, pertencem as coisas deste mundo? Os criados numa sociedade de viés socialista , não terão dificuldade em responder: Ao estado ! E , nós outros, afeitos mais ao capitalismo, nas suas mais disfarçadas formas, rapidamente concluiremos que as coisas deste mundo são de quem as adquire, ou as recebe como herança, roubo ou doação com diferenças pouco claras em todas estas formas de apropriação. Há, certamente, uma visão eminentemente utilitarista nestas duas respostas. O menino que anda na sua bicicleta, o rapaz que dirige o carro próprio, o homem que construiu sua casa podem até ser considerados proprietários reais destes bens; mas, é preciso admitir, caro ouvinte, existem posses que vão além do simples valor monetário, que ultrapassam a frieza do código de barras. Assim, o milionário que arrematou no leilão “Os girassóis” de Van Gogh, por uma fortuna, não é o dono do quadro, embora tenha a absoluta certeza disso. A obra de arte também já não pertence ao seu autor e nem a toda a humanidade como se possa pensar. Os reais donos de “Os girassóis” são todos aqueles que se sensibilizam diante da pintura e que, de alguma maneira, entendem que seu mundo interior mudou para melhor e que os olhos se desembaçaram para as belezas do mundo. As madames que ganharam colares de diamantes de amantes -- desculpem o trocadilho-- talvez até se achem donas definitivas das jóias. Em verdade a elas não pertencem. Simplesmente elas manterão os colares guardados a sete chaves, numa ansiedade incrível, sem as poder usar, temendo assalto. Nunca entenderão que as jóias são muito mais propriedade daqueles que, mesmo à distância, um dia se encantarão com o brilho eterno daquelas pérolas e se sentirão tocados mesmo sem nunca as conseguir tocar.
E as manhãs, as luas cheias, os crepúsculos e as auroras? Quem detém os seus passes ? Todos aqueles que os conseguem apreciar, que não deixaram as retinas se embaçarem definitivamente com a névoa cotidiana. O luar não me pertence se ao olhar para o céu só consigo enxergar o néon. Nem é do astronauta ou do astrônomo que o observa com um olhar tecnicista, do mesmo jeito que o anel de ouro não é propriedade privada do ourives. Tudo que nos toca e emociona pode ser arrolado como parte do nosso inventário de bens e de sonhos.
Esta semana, olhando as ruas e praças aqui do Crato, pus-me a imaginar se elas são um bem público, de todos os cidadãos da cidade de Frei Carlos. Claro que numa visão mais utilitarista todos que percorrem as avenidas e logradouros podem se gabar de proprietários. Muitas vezes, inclusive, justificando monetariamente : tudo isto que aí está, foi construído com o dinheiro dos nossos impostos! Todos têm lá uma nesguinha de tudo isto , se fôssemos proceder à partilha. O grosso da população desta cidade, no entanto, é detentora de tantos outros bens mais individuais e privados que sequer se dá conta desta outra posse bem mais coletiva, comunitária e de tão pouco valor de venda e de troca.
Há, no entanto, raríssimas figuras que têm a rua e as praças como sua fábrica, seu ofício e , muitas vezes, até sua casa. Mendigos, boêmios, “drome-sujos”, bêbados têm uma relação quase que incestuosa com os logradouros públicos. Para eles as avenidas não são vias de trânsito, mas de permanência. As marquises e bancos se transformam facilmente em teto e cama e os jardins se fazem de quintais e pomares . Eles , na verdade, são seus reais proprietários por usucapião.
No domingo último, um destes grandes latifundiários urbanos partiu na viagem derradeira. Uma das mais populares personalidades cratenses. Mais conhecido que muitos políticos e poderosos do Cariri. Zé Bedeu amealhou em vida o que a existência lhe legou. Dono de muitas ruas, milionário de muitas marquises, feudalista de inúmeras praças, banqueiro de tantos bancos, sócio de muitos bares. Hedonísticamente percorreu a travessia. Aqui veio para diversão de todas as horas e não para o suor de todos os dias. No mar de insensatez da vida, não nadou contra a corrente: abriu os braços , boiou e se deixou levar no torvelinho. Como suportar a amputação diária de ilusões e desejos, sem anestesia? Sabia-se pó, entendia que umedecido pelo álcool chegaria a lama e foi desta argamassa edificou pacientemente suas ruínas. Deixa uma imensa herança imaterial imune totalmente à sanha dos inventários e das partilhas. Todos aqueles que um dia se emocionarem com o barulho das fontes de pé-de-serra, com o orvalho que borrifa a bromélia, com a sanguínea aurora que vaza o ventre da noite podem se considerar seus herdeiros universais.

J. Flávio Vieira

5 comentários:

  1. Meu caro JFlávio,
    em que magníficas paragens
    tua filosófica sensibilidade pairou.
    Zé Bedeu morreu e tu criaste um belo e profundo texto.
    Reflitamos.

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  2. queria eu, quando também me abraçar com a cobradora de impostos, ter a certeza que um vate vai também lembrar aos que me viarm passeando nas praças e ruas de qualquer cidade. que também sou dono, ou fui. que também fui imaterial. que texto ducaralho meu amigo. e que zé bedeu continue dono. nem que seja de uma nuvem.

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  3. O Zé Bedeu pelo que traça JFlávio era dono da cidade e pelo que li a cidade era dona dele. Pelo menos desta geração maravilhosa que ficou no Crato e movimenta a alma da cidade pelas vertentes da Chapada do Araripe.

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  4. Obrigado ao Domingos, ao Lupeu e ao Zé do Vale pelos comentários. Todos eles latifundiários de imensos bens imateriais, estes que são os únicos que perduram.

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  5. Também sou cachaceiro
    Como foi Zé Bedeu
    Aos inventariantes de sonhos
    Como tambem ele e eu
    Registrem todos os bens
    Os que derem e no que deu

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