quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Somos todos filhos da cópula

Tiquinho. Onze anos. Ruivo como um Viking. Sardas por todo o território corporal. Enferrujado e, sem qualquer preconceito, enfezado até com a sombra. Tal, em face de um espírito muito desconfiado. Provavelmente tenha adquirido tal desconfiança pelo seu estado diferenciado entre tantos mamelucos. Mas todos sabiam que a matriz estava no próprio apelido: tiquinho. Apelido: este coroamento social que nos aplicam, sem que queiramos a monarquia. E o apelido chegou a Tiquinho por uma incompreensão de Bobôco.

Bobôco, lápis de carpinteiro por trás da orelha, óculos fundo de garrafa e uma surdez de fazer inveja a uma porta. E tudo ocorreu numa roda de adultos quando Tiquinho, ainda não tinha esta alcunha. Acontece que Antonio da Bibia, enquanto dava umas baforadas em seu lasca peito, olhava para um menino à época com seis anos, brincando numa agitação que só ele possuía entre os outros. Vendo aquele menino dourado, até nas sobrancelhas e cílios, Antonio comentou: este menino é igual um periquito. Não qualificou o pássaro todo, mas todos entenderam que era um periquito australiano. Nisso, Bobôco que tentava pescar algum retalho da conversa, se admirou do que Antonio tinha chamado o menino e na sua interpretação de mouco perguntou: prequitinho? Todo mundo caiu na gargalhada e aí o primeiro patamar do enfezamento de Tiquinho.

A situação ficou tão difícil, foi tanto menino com roncha das pedradas de Tiquinho que, afinal, uma convenção entre pais e as demais crianças evoluiu o Prequitinho para o Tiquinho de hoje em dia. Não que Tiquinho gostasse mais do nome, preferia o seu original Elvis, todos sabemos em homenagem a quem, embora se tenha em contas que se os pais tivessem consciência histórica o chamaria de Erik, o Vermelho ou algo assemelhado. Mas Tiquinho deu para a adaptação social do menino ocorrer, embora não sem atritos. Como este que segue.

Tiquinho chegou em casa mais vermelho que o seu dourado ruivo. Vinha suando muito, com aquele exalar de cheiros que só os ruivos têm. Entrou de casa adentro como se buscasse a arma de uma vingança. Nisso o avô percebe o vulcão e pergunta o que houve. O menino esbraveja com todas as imprecações que o dicionário guardara por tantos séculos. O avô tonto de tanta sinonímia, afinal consegue uma explicação. Valdir, um vizinho, tinha dito que Tiquinho era filho de uma cópula (isso para amenizar os leitores, pois disse mesmo foi outro sinônimo para tal palavra). Aquilo era uma desfeita com a mãe dele, com ele e com toda a família. Agora ele tinha que honrar a dignidade familiar com uma grande vingança.

O avô, sábio com os entreveros do tempo que trabalhou nos seringais da Amazônia, foi acalmando o neto com alguns detalhes. Descascando o assunto como se faz com uma cana. Primeiro procurando que o neto verbalizasse o que entendia por aquele xingamento. Depois procurando universalizar a situação, afinal somos todos filhos de cópulas. Aí Tiquinho, muito envergonhado tempera com o avô se naquela generalização havia o prazer, o gozo que tanto o catecismo cristão criticava através dos sete pecados capitais. Afinal, ficou claro que o pai de Tiquinho copulava com a mãe dele e que aquilo ao invés de luxúria era uma bonachisse do Pai Eterno pelos termos do crescei e multiplicai-vos. Situação resolvida? Nem tanto.

No dia seguinte chega a reclamação de olho inchado em Valdir. O avô cobra aquela atitude de Tiquinho. Este responde: isso é para nunca mais ele me deixar em dúvida.

3 comentários:

  1. Bom dia !
    Quando você não chega a casa fica vazia !

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  2. Meu caro José,
    que prosa bacana de se ler e imaginar todas as lúdicas cenas com um sorriso de soslaio no canto da boca...
    Abraços.

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  3. Eu não sou ninguém para falar o que irei falar, apenas um "enxerido" leitor que quer expressar um pensamento pessoal que pode ou não ser útil ao autor...:

    Meu amigo José do Vale às vezes é um escritor surpreendente e brilhante, como nesse texto. Em alguns, não sei se por opção mesmo, ou por falta de esforço, ou ainda, eu que não me inclinei ao texto, acho sem inspiração. Mas quando ele pega na veia mesmo, é um escritor refinado. Toda crítica é chata de se ouvir, mas daqui o que noto é que o José do Vale, com seu enorme talento, atira para todos os lados. Não tem um estilo certo. Mas há traços. O Zé Flávio, o Marcos Leonel ja desenvolveram um estilo muito pessoal de escrever, inconfundível, mas não sei se é defeito meu, um texto de José do vale, às vezes pode se passar por algum outro de José Flávio ou Armando Rafael, ou mesmo Nijair Pinto.

    Mas há certas temáticas em que ele brilha, mas é um cidadão erudito demais, formado demais, e como muitos da cidade grande, já perderam um pouco a habilidade de contar um "causo" como o verdadeiro matuto contaria. É preciso essa erudição e ser José do vale, um estilo próprio, alguém com tanta capacidade de escrever bem...

    Espero ainda um livro do grande José do Vale, bem original. Porque sei que ele tem lampejos de genialidade.

    Mas isso é a opiniao de UM. Não quer dizer que seja verdade, mas é assim que daqui eu noto...

    Abraços,

    Dihelson Mendonça

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