terça-feira, 23 de dezembro de 2008

O Veio da Vida

Acordou encafifado: meio barro, meio tijolo. Mundo se projetando algo sombrio, como um filme noir. As paredes da velha casa , opressivas , carregavam-se com aquele limo pegajoso e úmido das prisões.A vida resumia-se a alguns fragmentos desconjuntados do passado: um puzzle disperso, impossível de ser reorganizado.Rápido percebeu que faltavam resquícios de vida ao derredor , até mesmo porque o ambiente é apenas um mero reflexo das nossas luzes interiores. Quem sabe, adornando aqueles interiores com o verde frescor de alguma begônia, o mundo se re-imantaria de magnetismo vital ? Perambulou pelas ruas como quem procura um objeto inencontrável : o Santo Graal da felicidade desvanecida.
As rosas da floricultura lhe pareceram opacas e inodoras . Os pássaros na feirinha apresentaram-se profundamente silentes e apenas refizeram na sua alma a angustiante gaiola em que subitamente vira transformada, pela manhã , o seu “ Lar Amaro Lar”. Nem lojinha de animais de estimação melhorou-lhe o ânimo, sentiu-os como que empalhados e, num átimo, percebeu que o hamster, o periquito, o chihahua seriam incapazes de repovoar o deserto em que se transformara a casa. Sequer os peixes multicolores no aquário iluminado no cantinho da loja resplandeceram alegria e vivacidade.
Sentia-se como único sobrevivente de uma explosão nuclear, tentando refazer o mundo com os dispersos estilhaços que restaram. Desiludido , sem saber bem porque nem pra que, comprou de um vendedor introspectivo e frio, um aquário, sem água e sem peixes. Seguiu para casa com aquele trambolho e colocou-o , sintomaticamente vazio , na pequena estante da sala que abrigava a TV. Pressentiu, com os dias, que aquele aquário como que representava um retrato da sua alma: oca, ressequida e sem aparente utilidade. Aquela imagem, estranhamente, aumentou o ar denso e quase irrespirável da sala.
Saiu, no outro dia, em busca , de um habitante para o aquário. Na esquina encontrou um vendedor de fósseis e , num ímpeto, adquiriu um pequeno peixe petrificado. Em casa colocou-o cuidadosamente dentro do aquário. Com o passar dos dias foi como se a sala se iluminasse. Já não existiam objetos ao derredor, o fóssil no aquário da sala alegrava-lhe a vida, mas , por outro lado, mantinha-o hipnotizado e submisso. Não mais saiu à rua, deixou de atender telefone, a TV já não tinha qualquer sentido. Algumas semanas depois começou a notar que as paredes da casa se iam tornando mais escuras e compactas e avançavam em direção ao centro , como se fossem se encorpando, dia após dia. Começou notar em si mesmo a pele mais escura e endurecida e com o passar do dia se foram transformando em escamas. As articulações se foram emperrando até leva´-lo à total imobilidade. Um belo dia as paredes da sala o aprisionaram definitivamente. Desde então aguarda , ansiosamente, as pancadas do martelo que rompam o veio da pedra e mostrem seu testemunho petrificado para a estonteante mobilidade da vida.

J. Flávio Vieira

3 comentários:

  1. Bravo!!!
    Boas Festas, meu amigo!
    Abraços.

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  2. Crônica tão fundamental quanto fundamental é o que foi tocado.

    Parabéns e abraços natalinos.

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  3. Abraços à Marta e ao Domingos leitores tão assíduos e inteligentes do que é postado no blog, além de poetas de sensibilidade à flor da pele.
    Ótimas Festas de Fim de Ano!

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