
O efeito lisérgico da viagem delirante que me provocara o colorido das fantasias e a nudez das musas sambistas da Marquez de Sapucaí não haviam passado ainda. Meu coração insistia em pulsar no ritmo do tambor da bateria do Salgueiro e já era sábado, quase uma semana depois. Búzios me dava a chance de descanso e cura de qualquer ressaca pelos excessos ao corpo submetidos e, espiritualmente, arrependimento de um montão de pecados deste degredado filho de Eva, mesmo que ela seja chamada de Brigite Bardot, a musa inspiradora daquele paraíso! Já era noite, meio da noite. Revi ainda na câmera digital as fotos do entardecer que fiz na orla e me detive particularmente nalgumas em que dois meninos acrobatas posaram com piruetas e cambalhotas lançando-se ao mar na contra - luz do ocaso. Belas imagens! – suspirei com orgulho. Já se aproximava a madrugada quando apaguei as luzes do meu quarto e pela vidraça do janelão revelou-se um céu estrelado. Não me fiz de rogado, saí do quarto e fui para o deck da piscina de águas azuladas. Esparramei o corpo numa cadeira que deixava o meu olhar numa panorâmica de cento e oitenta graus com a abóboda celestial. O céu de Armação de Búzios era agora o meu teto e uma redoma sobre o mundo. Apontei as Três Marias, o Cruzeiro do Sul e desenhei com o dedo a constelação de Tauros, o meu signo. -Que bela noite! Respirei profundamente querendo reter aquele encantamento o mais que pudesse na minha retina. Como estou bem comigo e com o mundo!-exclamei prazeroso. Desejei ver e, não demorou muito, vi uma estrela cadente naquele céu negro e infinito, salpicado de estrelas e constelações, que me dava arrepios de tão profundo e me embevecia, um quase torpor. No radinho de pilhas sintonizado, meu companheiro inseparável dessas horas, John Lennon cantava Stand By Me, e inseria com naturalidade uma trilha sonora para aquela cena de um filme noir. Surtei: pus-me a cantarolar canções que queria gravar no próximo disco; imaginei soluções cênicas para uma peça de teatro que montaria; desejei abraçar de uma só vez todos os amigos, parentes e aderentes e compartilhar com eles a minha felicidade e dizer-lhes dos meus projetos para este ano que agora começa após o Carnaval. Senti saudades de outros afetos... E uma levíssima melancolia quis tomar conta de mim. Súbito, um vento forte me fez retesar o corpo de frio. Lancei-me impulsivo na água morna da piscina. Mergulhei bem fundo onde ela parecia ainda mais quente e aconchegante. Foi tamanha a sensação de prazer que minha vontade era a de passar o quanto pudesse naquele desconhecido e aconchegante mundo aquático. O tempo se relativizava. Sentia-me confortável naquele líquido denso e morno. Um ambiente uterino. Transcendente! Quando dei por mim a água me engasgava. Alvoroçado tateei em busca da superfície e do ar que me faltava. Tossi muito e quase provoco até voltar à tona e alcançar a borda da piscina. Assustado, senti-me traído pelas águas. Apressado, vesti o roupão e percebi agora um céu sem brilho, turvo, nublado, e um vento mais forte imprimia movimento e som nos arbustos, folhagens e nas copas das árvores maiores. Sem mais confiar no que poderia vir pela frente, desliguei o radinho e retornei ao apartamento. No banheiro surpreendi-me com a minha imagem refletida no espelho: um homem duplo que ora aparecia muito jovem, com grande vibração pela vida e outro, já velho, conformado com a possibilidade da morte iminente. Quem era eu dos dois? Levei a mão ao rosto e, com leveza, acariciei as minúsculas rugas da pele que nele despontavam. A mão direita beliscou a barba esbranquiçada e um estranho sorriso compreensivo iluminou a face do outro lado. Despi-me, equilibrei a temperatura da água e tomei um banho morno relaxante, para me apaziguar e facilitar o sono. Fui pra cama e adormeci.
Acordei no meio da madrugada, por volta das três horas, com uma dor incômoda que preenchia o meu ventre inteiro. Que dor era aquela que me pegara adormecido de forma tão traiçoeira. Por mais que rolasse o corpo na cama ela continuava lá, insistente, estranha e chata. Levantei e fiz muitas tentativas de evacuação no banheiro porque supunha estar com uma infecção de origem alimentar. Nenhuma resposta. A dor não me deu trégua até que amanheceu e busquei uma medicação para aliviar aquele mal estar. As pessoas que acompanhavam o meu drama particular sugeriram que procurasse a emergência de um hospital, mas, ingenuamente, depois da medicação analgésica me senti bem melhor e mais confortável, o que me fez desconsiderar todos os apelos naquele sentido. Permaneci em Búzios e somente às quinze horas - doze horas depois do início do mal estar -, nosso grupo retornou ao Rio como estava programado. A batalha era contínua entre a dor e o analgésico. E, assim, passaram-se trinta e seis horas até o domingo (nove da manhã), quando minha cuidadosa irmã, com formação em medicina, fez-me enfrentar a emergência de um hospital na Tijuca. Às dez horas já estava numa cápsula da máquina de tomografia e com a mesma dor do começo, porque parara de me automedicar. Saí do exame sem qualquer alívio e fui sentar-me numa cadeira no corredor adjacente à sala. De repente, a dor se transformou em algo monstruoso dentro de mim, esgarçando-me e dilacerando as minhas entranhas. O que era aquilo, meu Deus?! Corri para o banheiro que estava ao lado e caí no chão. Chorei o mais que pude tentando suportar o insuportável. Naquele instante consegui ainda, com o pouco da lucidez que me restava, pensar poeticamente que vida e a morte estavam de mãos dadas coabitando dentro de mim e que somente eu, a criatura, e Deus, o criador, podiam compreender, em sua plenitude, aquele momento limiar. Respirei profundamente e pedi a Deus* pela minha saúde e vida. Gritei por socorro e acudiram-me dois anjos negros que me colocaram nos braços e me levaram até a cama da enfermaria do Hospital. Quando retomei os sentidos, um anjo feminino e de olhos de esmeralda que escondia suas asas brilhantes sob o jaleco segurava a minha mão com uma suavidade tão grande que parecia tão somente que apenas o calor curativo de suas mãos me tocava. Diagnosticou: - Você tem um apêndice estrangulado e, com a urgência possível, será submetido a uma intervenção cirúrgica!
Tudo aconteceu muito rápido. Duas horas de cirurgia para livrar o meu corpo doente do apêndice necrosado e das bactérias que se apossavam dele.
Sete dias de internação hospitalar, guardados por anjos que escondiam suas assas resplandecentes sob jalecos brancos, azuis, cinzas, e cor de rosa, todavia denunciavam a sua natureza divina no sorriso generoso, no afago das mãos e, até, na indolor picada das agulhas, levando ao restabelecimento da minha saúde.
Sete dias de reflexão e oportunidade única para a gestação de um novo homem que deseja recomeçar de um jeito diferente e novo e que, como ponto de partida, manifesta aqui a sua gratidão a todos que neste plano terreno, de forma positiva, contribuíram para esta nova fase de minha vida: Iracema (irmã médica), Socorro (irmã cuidadora), Vladimir (irmão de coração), Lorena/Carlinhos (sobrinho sempre disponível, de férias no Rio), José (Russa) e Francisco (irmãos amorosos que vieram de São Paulo e Brasília para dar apoio), Dra. Valdilene e sua equipe de cirurgiões e anestesista (meus salvadores), a equipe hospitalar do Hospital São Vicente de Paulo do Rio de Janeiro – enfermeiros, técnicos, pessoal da limpeza e hotelaria (profissionais simpáticos e amigos), minha irmã Ana Maria e sua divina madrinha (N.Sra. de Fátima), Dr. José Flávio, Blandino, Carlos Rafael Dias, João do Crato (amigos cratenses), Valdete Tiziani (sempre presente), Mita e Isabel (primas do CE e de PE que me incluíram em suas orações) e, especialmente, Emília (filhos e netos), Enedina (íntima dos Santos) / Antônio Wagner (filhas), Isa (filhos e netos), Maria do Carmo (filhas e netos), Nena (bacaninha!)e Val, Rita (tia Torta)e ainda, Ana Lúcia, Regina, Tereza, Kátia, Luiza, Hilma e Ester (amigas cariocas que ficaram na torcida). Eles que pediram a Deus por mim e acreditaram na minha recuperação! Um beijo no coração de todos vocês.
NOTAS
*A palavra hebraica SALATIEL significa eu pedi aDeus.
- A foto que ilustra a postagem foi clicada no entardecer de Búzios/RJ no dia anterior ao drama relatado acima.
Acordei no meio da madrugada, por volta das três horas, com uma dor incômoda que preenchia o meu ventre inteiro. Que dor era aquela que me pegara adormecido de forma tão traiçoeira. Por mais que rolasse o corpo na cama ela continuava lá, insistente, estranha e chata. Levantei e fiz muitas tentativas de evacuação no banheiro porque supunha estar com uma infecção de origem alimentar. Nenhuma resposta. A dor não me deu trégua até que amanheceu e busquei uma medicação para aliviar aquele mal estar. As pessoas que acompanhavam o meu drama particular sugeriram que procurasse a emergência de um hospital, mas, ingenuamente, depois da medicação analgésica me senti bem melhor e mais confortável, o que me fez desconsiderar todos os apelos naquele sentido. Permaneci em Búzios e somente às quinze horas - doze horas depois do início do mal estar -, nosso grupo retornou ao Rio como estava programado. A batalha era contínua entre a dor e o analgésico. E, assim, passaram-se trinta e seis horas até o domingo (nove da manhã), quando minha cuidadosa irmã, com formação em medicina, fez-me enfrentar a emergência de um hospital na Tijuca. Às dez horas já estava numa cápsula da máquina de tomografia e com a mesma dor do começo, porque parara de me automedicar. Saí do exame sem qualquer alívio e fui sentar-me numa cadeira no corredor adjacente à sala. De repente, a dor se transformou em algo monstruoso dentro de mim, esgarçando-me e dilacerando as minhas entranhas. O que era aquilo, meu Deus?! Corri para o banheiro que estava ao lado e caí no chão. Chorei o mais que pude tentando suportar o insuportável. Naquele instante consegui ainda, com o pouco da lucidez que me restava, pensar poeticamente que vida e a morte estavam de mãos dadas coabitando dentro de mim e que somente eu, a criatura, e Deus, o criador, podiam compreender, em sua plenitude, aquele momento limiar. Respirei profundamente e pedi a Deus* pela minha saúde e vida. Gritei por socorro e acudiram-me dois anjos negros que me colocaram nos braços e me levaram até a cama da enfermaria do Hospital. Quando retomei os sentidos, um anjo feminino e de olhos de esmeralda que escondia suas asas brilhantes sob o jaleco segurava a minha mão com uma suavidade tão grande que parecia tão somente que apenas o calor curativo de suas mãos me tocava. Diagnosticou: - Você tem um apêndice estrangulado e, com a urgência possível, será submetido a uma intervenção cirúrgica!
Tudo aconteceu muito rápido. Duas horas de cirurgia para livrar o meu corpo doente do apêndice necrosado e das bactérias que se apossavam dele.
Sete dias de internação hospitalar, guardados por anjos que escondiam suas assas resplandecentes sob jalecos brancos, azuis, cinzas, e cor de rosa, todavia denunciavam a sua natureza divina no sorriso generoso, no afago das mãos e, até, na indolor picada das agulhas, levando ao restabelecimento da minha saúde.
Sete dias de reflexão e oportunidade única para a gestação de um novo homem que deseja recomeçar de um jeito diferente e novo e que, como ponto de partida, manifesta aqui a sua gratidão a todos que neste plano terreno, de forma positiva, contribuíram para esta nova fase de minha vida: Iracema (irmã médica), Socorro (irmã cuidadora), Vladimir (irmão de coração), Lorena/Carlinhos (sobrinho sempre disponível, de férias no Rio), José (Russa) e Francisco (irmãos amorosos que vieram de São Paulo e Brasília para dar apoio), Dra. Valdilene e sua equipe de cirurgiões e anestesista (meus salvadores), a equipe hospitalar do Hospital São Vicente de Paulo do Rio de Janeiro – enfermeiros, técnicos, pessoal da limpeza e hotelaria (profissionais simpáticos e amigos), minha irmã Ana Maria e sua divina madrinha (N.Sra. de Fátima), Dr. José Flávio, Blandino, Carlos Rafael Dias, João do Crato (amigos cratenses), Valdete Tiziani (sempre presente), Mita e Isabel (primas do CE e de PE que me incluíram em suas orações) e, especialmente, Emília (filhos e netos), Enedina (íntima dos Santos) / Antônio Wagner (filhas), Isa (filhos e netos), Maria do Carmo (filhas e netos), Nena (bacaninha!)e Val, Rita (tia Torta)e ainda, Ana Lúcia, Regina, Tereza, Kátia, Luiza, Hilma e Ester (amigas cariocas que ficaram na torcida). Eles que pediram a Deus por mim e acreditaram na minha recuperação! Um beijo no coração de todos vocês.
NOTAS
*A palavra hebraica SALATIEL significa eu pedi aDeus.
- A foto que ilustra a postagem foi clicada no entardecer de Búzios/RJ no dia anterior ao drama relatado acima.
Querido Salatiel,
ResponderExcluiresse novo homem que surge
no teu silêncio,
na tua contemplação
e na tua mais intensa energia
viverá ainda mais tempo -
partirá da infância, transitará pela adolescência
e só então entre as duas velhices alcançará a plena sabedoria.
Portanto, Valioso Cara, tens ainda um rio imenso de tempo
para outras arrebatadoras fotos
e felicidade das constelações
de um céu lisérgico.
Saúde,
Luz!
Um forte abraço,
um forte abraço.
Caro amigo Salatiel
ResponderExcluirNão querendo chorar sobre leite derramado, não deixa de ser triste ver como nós, seres humanos e tão inteligentes, continuamos a abusar e destruir nossos corpos tão viciosamente, com "pecados" para alcançar momentos de felicidade e como tão frequentemente arrependemo-nos apenas quando a conta finalmente chega.
À beira de uma piscina, contemplando o vazio silencioso de um céu estrelado ou tirando as nossas belas fotografias, sentimos alguma necessidade de "pecar" para sentirmo-nos bem? E no entanto, convencêmo-nos noutros momentos - e tão erroneamente - da necessidade de "pecar" para sentirmo-nos bem, divertirmo-nos, etc...
Curiosamente, no Hebreu a palavra "pecado" traduz-se "khate" e a sua raiz é "khaw-taw" que significa "errar a marca (ou o alvo)", fazendo referência aos arqueiros... Bem diferente do entendimento mais recente de "fazer o mal"...
Mas enfim, quem nunca "errou (erra?)", que atire a primeira pedra. Contaram-me uma vez que um Português, ao ouvir Jesus proferir tal sermão, atirou uma pedra e acertou bem na cabeça da mulher adúltera. Chocado, Jesus perguntou "Então amigo, você nunca errou?!" ao que o Português respondeu "Não desta distância."
Nunca perguntei o que fazia um Português na Judeia há 2000 anos atrás mas como até sou Português gosto de contar este conto. No entanto, confesso que ainda me falta a extrema pontaria desse grande sábio...
Um grande abraço com votos de saúde e luz.
Salatiel:
ResponderExcluirSó agora (dia 12 - 12:43 - soube da sua enfermidade. Tudo terminou bem. Louvado seja Deus! Espero reecontrá-lo em breve. Lépido e fagueiro. Para a alegria dos que lhe estimam...
Li, e chorei.
ResponderExcluirGrande alívio : Você está vivo !
Amo você !
Cabra,
ResponderExcluirParabéns pela recuperação e pelo texto. Estávamos todos torcendo por sua recuperação aí.Se vc tivesse ao menos umas cinco vidas daquelas de Mané D´Jardim ! No fundo sabíamos que era uma doecinha de nada e que vc ia escapar, estávamos preocupados apenas com seu dengo que soubemos era demais. Umas trinta mulheres no seu pé, fazendo dengo e cafuné, a cada espirro seu, me disse João do Crato, que pelo menos cinco desmaiavam. Deixe de moleza e de amofinamento e vamo simbora, rapaz, teatro é prá gente fazer aqui e não aí no Hospital São Vicente e na Casa de Iracema !
Grande Abraço !
Chagas,
ResponderExcluirTransito com naturalidade pelos esinamentos de Epicuro (hedonismo), Aristóteles (prática das irtudes) e de quando em vez me pego querendo salvar a minha Alma cristã.
A todos vocês o meu carinho e um beijo fraternal.
Querido, Salatiel é eu pedi a Deus, acho que o Papai gosta de você, avisou antes...um susto não gesta novos homens, certamente os lapida, espero mudanças não tão drásticas, muita gente gosta de você assim mesmo, e acho que devo explicar um texto Salatiélico que fiz meio surreal, como uma poesia minha sacaninha que você escolheu pra publicar na revista virtual. E quando perguntei o motivo da escolha você disse: porque achei surreal. Então Salatiélico seria surreal, ou "pedindo a Deus" sua atenção, sua presença no blog, são e salvo. Que bom que você veio bem.
ResponderExcluirBoa sorte, um beijo meu.
A verdadeira e única dor que o poeta sente é aquela que ele não consegue fingir que não sente.
ResponderExcluirViemos ao mundo, invariavelmente, sob um manto de dor, que superada pelo nascimento, vira alegria e alívio. Para nascer um novo homem é preciso um novo parto, invariavelmente doloroso.
Belo texto, Salatiel, parido pela dor que se foi depois de extirpada aquela parte que já não faz mais parte de você.
Um forte, porém indolor, abraço!
Abraços,Saltiel.
ResponderExcluirAproveite o período messiânico do arrependimento e zera os vales.