Escrito por Jesús Huerta de Soto
Qua, 11 de Março de 2009 00:00
Como bem observou o ensaista Paulo Roberto de Almeida no site OrdemLivre.org: "Não se é neoliberal por vontade própria, mas apenas por ter sido assim catalogado por aqueles que detêm o monopólio dessa classificação: os opositores de supostas idéias 'neoliberais'." (v. O mito do neoliberalismo). Para alguns teóricos "antineoliberais" as origens do que hoje denominam "neoliberalismo" remetem à Escola Austríaca de Economia, principalmente na figura de Friedrich Hayek. Nada mais falso. Hoje sabemos que os escolásticos espanhóis do Século de Ouro (Sec. XVI) foram já capazes de articular o que depois viriam a ser os princípios mais importantes da escola Austríaca de Economia.
O texto a seguir é um trecho do livro "Escola Austríaca - Mercado e criatividade empresarial" de Jesús Huerta de Soto. A versão eletrônica completa está disponível para download em nossa Biblioteca Online ou clicando aqui.
Os escolásticos do Século de Ouro espanhol como precursores da Escola AustríacaPara Friedrich A. Hayek, os princípios teóricos da economia de mercado, assim como os elementos básicos do liberalismo económico, não foram concebidos, como geralmente se acredita, pelos calvinistas e protestantes escoceses, sendo que, pelo contrário, são o resultado do esforço doutrinário empreendido pelos dominicanos e jesuítas membros da Escola de Salamanca durante o Século de Ouro espanhol (Hayek, 1988: 288-289). Hayek chegou mesmo ao extremo de citar dois dos nossos escolásticos, Luís de Molina e Juan de Lugo, no seu discurso de aceitação do Prémio Nobel da Economia em 1974 (Hayek, 1976c: 19-20). Este economista austríaco começou a convencer-se da origem católica e espanhola da análise económica austríaca a partir dos anos cinquenta, graças à influência do professor italiano Bruno Leoni. Leoni convenceu Hayek de que as raízes da concepção dinâmica e subjectivista da economia eram de origem continental e de que, portanto, deveriam procurar-se na Europa mediterrânica e na tradição grega, romana e tomista, mais do que na tradição dos filósofos escoceses do século XVIII (Leoni, 1995: 95-112). Além disso, Hayek teve a sorte de, durante esses anos, ter uma das suas melhores alunas, Marjorie Grice-Hutchinson, que se especializara em latim e literatura espanhola, levando a cabo, sob a orientação de Hayek, um trabalho de investigação sobre as contribuições dos escolásticos espanhóis no âmbito da economia, trabalho esse que, com o tempo, se converteu num pequeno clássico (Grice-Hutchinson, 1952, 1982 e 1995).Quem foram estes precursores intelectuais da moderna Escola Austríaca de Economia? A maioria deles foram dominicanos e jesuítas , professores de moral e teologia em universidades que, como a de Salamanca e a de Coimbra, constituíram os focos mais importantes do pensamento durante o Século de Ouro espanhol. (Chafuen, 1986). Analisaremos de seguida, de forma sintética, quais foram as suas principais contribuições para o que mais tarde seriam os elementos básicos da análise económica austríaca.Talvez devamos começar por fazer menção a Diego de Covarrubias y Leyva. Covarrubias (1512-1577), filho de um famoso arquitecto, chegou a bispo da cidade de Segóvia (em cuja catedral se encontra enterrado), sendo durante vários anos ministro do rei Filipe II. Em 1555, Covarrubias expôs melhor do que ninguém até então a essência da teoria subjectiva do valor, à volta da qual gira todo o enquadramento da análise económica da Escola Austríaca, ao afirmar que “o valor de uma coisa não depende da sua natureza objectiva mas antes da estimação subjectiva dos homens, mesmo que tal estimação seja insensata”; aludindo para ilustrar a sua tese ao facto de “nas Índias o trigo valer mais do que em Espanha porque ali os homens o estimam mais, e isso apesar de a natureza do trigo ser a mesma em ambos os lugares” (Covarrubias, 1604: 131). Covarrubias escreveu também um estudo sobre a evolução histórica da diminuição do poder aquisitivo do maravedí, antecipando muitas das conclusões teóricas sobre a teoria quantitativa do dinheiro que posteriormente seriam expostas por Martín de Azpilcueta e Juan de Mariana, entre outros. O estudo de Covarrubias incorpora um grande volume de dados estatísticos sobre a evolução dos preços no século precedente àquele em que viveu, e foi publicado em latim com o título de Veterum collatio numismatum. Esta obra de Covarrubias é muito significativa, não apenas por ter sido citada de maneira laudatória em séculos posteriores pelos italianos Davanzati e Galiani, mas sobretudo por ser um dos livros citados por Carl Menger nos seus Princípios de Economia Política (Menger , 1997: 325).A tradição subjectivista iniciada por Covarrubias é continuada por outro notável escolástico, Luis Saravia de la Calle, que é o primeiro a tornar clara a verdadeira relação que existe entre preços e custos no mercado, no sentido de que, em todas as situações, são os custos que tendem a seguir os preços e não o contrário, antecipando-se assim na refutação dos erros da teoria objectiva do valor que seria posteriormente desenvolvida pelos teóricos da escola clássica anglo-saxónica, e que se viria a converter no fundamento da teoria da exploração de Karl Marx e dos seus sucessores socialistas. Assim, Saravia de la Calle, na sua obra Instrucción de mercaderes, publicada em castelhano em Medina del Campo em 1544, escreveu que “os que medem o preço justo de uma coisa segundo o trabalho, custos e riscos em que incorre quem produz a mercadoria cometem um grave erro; porque o preço justo nasce da abundância ou falta de mercadorias, de empresários e de moeda, e não dos custos, trabalhos e riscos” (Saravia de la Calle, 1949: 53).Além disso, todo o livro de Saravia de la Calle se centra sobre a função do empresário, que ele denomina “mercader”, seguindo assim a já mencionada tradição escolástica sobre o papel dinamizador do empresário que remonta a Pedro João de Olivi, Santo António de Florença e, principalmente, São Bernardino de Sena (Rothbard, 1999: 113-121).Outra notável contribuição dos nossos escolásticos foi a introdução do conceito dinâmico de concorrência (em latim, concurrentium), entendida como o processo empresarial de rivalidade que move o mercado e impulsiona o desenvolvimento da sociedade. Esta ideia, que haverá de converter-se no coração da teoria do mercado da Escola Austríaca, contrasta radicalmente com os modelos de equilíbrio de concorrência perfeita, monopolística e de monopólio analisados pelos neoclássicos, e levou também os escolásticos a concluir que os preços do modelo de equilíbrio (que eles denominaram “preços matemáticos”), que os teóricos neoclássicos socialistas pretenderam utilizar para justificar o intervencionismo e a planificação do mercado, nunca poderiam chegar a ser conhecidos. Assim, Raymond de Roover atribui a Luis de Molina o conceito dinâmico de concorrência entendida como “o processo de rivalidade entre compradores que tende a elevar o preço”, e que nada tem a ver com o modelo estático de “concorrência perfeita” que, no século XX, os denominados “teóricos do socialismo de mercado” ingenuamente acreditaram poder ser simulado num regime sem propriedade privada (Raymond de Roover, 1955: 169). Apesar disso, é Jerónimo Castillo de Bovadilla quem melhor expõe esta concepção dinâmica da livre concorrência entre empresários no seu livro Política para corregidores, publicado em Salamanca em 1585, onde ele afirma que a mais positiva caracterísctica da concorrência é conseguir “emular” o concorrente (Popescu, 1987: 141-159). Castillo de Bovadilla enuncia ainda a seguinte lei económica, base da defesa do mercado por parte de todo o economista austríaco: “os preços dos produtos baixarão com a abundância, emulação e concorrência de vendedores” (Castillo de Bovadilla, 1985: 2, cap. 4, nº 49).Quanto à impossibilidade de os governantes ou os analistas chegarem a conhecer os preços de equilíbrio e os demais dados de que necessitam para intervir no mercado ou para elaborar os seus modelos, destacam-se as contribuições dos cardeais jesuítas espanhóis Juan de Lugo e Juan de Salas. O primeiro, Juan de Lugo (1583-1660), questionando-se sobre a determinação do preço de equilíbrio, já em 1643 havia concluído que depende de uma tão grande quantidade de circunstâncias específicas que apenas Deus o pode conhecer (“pretium iustum mathematicum licet soli Deo notum”) (Lugo, 1642: vol. II, 312). O segundo, Juan de Salas, em 1617, referindo-se à possibilidade de que um governante possa chegar a conhecer a informação específica que dinamicamente se cria, descobre e usa no mercado, afirma que “quas exacte comprehendere et ponderare Dei est non hominum”, ou seja, que apenas Deus, e não os homens, pode compreender e ponderar exactamente toda a informação e o conhecimento que é usada no processo de mercado pelos agentes económicos com todas as suas circunstâncias particulares de tempo e de espaço (Salas, 1617: 4, nº 6, 9). Como veremos, tanto Juan de Lugo como Juan de Salas antecipam, em mais de três séculos, as mais refinadas contribuições dos mais destacados pensadores austríacos (especialmente Mises e Hayek).
Qua, 11 de Março de 2009 00:00
Como bem observou o ensaista Paulo Roberto de Almeida no site OrdemLivre.org: "Não se é neoliberal por vontade própria, mas apenas por ter sido assim catalogado por aqueles que detêm o monopólio dessa classificação: os opositores de supostas idéias 'neoliberais'." (v. O mito do neoliberalismo). Para alguns teóricos "antineoliberais" as origens do que hoje denominam "neoliberalismo" remetem à Escola Austríaca de Economia, principalmente na figura de Friedrich Hayek. Nada mais falso. Hoje sabemos que os escolásticos espanhóis do Século de Ouro (Sec. XVI) foram já capazes de articular o que depois viriam a ser os princípios mais importantes da escola Austríaca de Economia.
O texto a seguir é um trecho do livro "Escola Austríaca - Mercado e criatividade empresarial" de Jesús Huerta de Soto. A versão eletrônica completa está disponível para download em nossa Biblioteca Online ou clicando aqui.
Os escolásticos do Século de Ouro espanhol como precursores da Escola AustríacaPara Friedrich A. Hayek, os princípios teóricos da economia de mercado, assim como os elementos básicos do liberalismo económico, não foram concebidos, como geralmente se acredita, pelos calvinistas e protestantes escoceses, sendo que, pelo contrário, são o resultado do esforço doutrinário empreendido pelos dominicanos e jesuítas membros da Escola de Salamanca durante o Século de Ouro espanhol (Hayek, 1988: 288-289). Hayek chegou mesmo ao extremo de citar dois dos nossos escolásticos, Luís de Molina e Juan de Lugo, no seu discurso de aceitação do Prémio Nobel da Economia em 1974 (Hayek, 1976c: 19-20). Este economista austríaco começou a convencer-se da origem católica e espanhola da análise económica austríaca a partir dos anos cinquenta, graças à influência do professor italiano Bruno Leoni. Leoni convenceu Hayek de que as raízes da concepção dinâmica e subjectivista da economia eram de origem continental e de que, portanto, deveriam procurar-se na Europa mediterrânica e na tradição grega, romana e tomista, mais do que na tradição dos filósofos escoceses do século XVIII (Leoni, 1995: 95-112). Além disso, Hayek teve a sorte de, durante esses anos, ter uma das suas melhores alunas, Marjorie Grice-Hutchinson, que se especializara em latim e literatura espanhola, levando a cabo, sob a orientação de Hayek, um trabalho de investigação sobre as contribuições dos escolásticos espanhóis no âmbito da economia, trabalho esse que, com o tempo, se converteu num pequeno clássico (Grice-Hutchinson, 1952, 1982 e 1995).Quem foram estes precursores intelectuais da moderna Escola Austríaca de Economia? A maioria deles foram dominicanos e jesuítas , professores de moral e teologia em universidades que, como a de Salamanca e a de Coimbra, constituíram os focos mais importantes do pensamento durante o Século de Ouro espanhol. (Chafuen, 1986). Analisaremos de seguida, de forma sintética, quais foram as suas principais contribuições para o que mais tarde seriam os elementos básicos da análise económica austríaca.Talvez devamos começar por fazer menção a Diego de Covarrubias y Leyva. Covarrubias (1512-1577), filho de um famoso arquitecto, chegou a bispo da cidade de Segóvia (em cuja catedral se encontra enterrado), sendo durante vários anos ministro do rei Filipe II. Em 1555, Covarrubias expôs melhor do que ninguém até então a essência da teoria subjectiva do valor, à volta da qual gira todo o enquadramento da análise económica da Escola Austríaca, ao afirmar que “o valor de uma coisa não depende da sua natureza objectiva mas antes da estimação subjectiva dos homens, mesmo que tal estimação seja insensata”; aludindo para ilustrar a sua tese ao facto de “nas Índias o trigo valer mais do que em Espanha porque ali os homens o estimam mais, e isso apesar de a natureza do trigo ser a mesma em ambos os lugares” (Covarrubias, 1604: 131). Covarrubias escreveu também um estudo sobre a evolução histórica da diminuição do poder aquisitivo do maravedí, antecipando muitas das conclusões teóricas sobre a teoria quantitativa do dinheiro que posteriormente seriam expostas por Martín de Azpilcueta e Juan de Mariana, entre outros. O estudo de Covarrubias incorpora um grande volume de dados estatísticos sobre a evolução dos preços no século precedente àquele em que viveu, e foi publicado em latim com o título de Veterum collatio numismatum. Esta obra de Covarrubias é muito significativa, não apenas por ter sido citada de maneira laudatória em séculos posteriores pelos italianos Davanzati e Galiani, mas sobretudo por ser um dos livros citados por Carl Menger nos seus Princípios de Economia Política (Menger , 1997: 325).A tradição subjectivista iniciada por Covarrubias é continuada por outro notável escolástico, Luis Saravia de la Calle, que é o primeiro a tornar clara a verdadeira relação que existe entre preços e custos no mercado, no sentido de que, em todas as situações, são os custos que tendem a seguir os preços e não o contrário, antecipando-se assim na refutação dos erros da teoria objectiva do valor que seria posteriormente desenvolvida pelos teóricos da escola clássica anglo-saxónica, e que se viria a converter no fundamento da teoria da exploração de Karl Marx e dos seus sucessores socialistas. Assim, Saravia de la Calle, na sua obra Instrucción de mercaderes, publicada em castelhano em Medina del Campo em 1544, escreveu que “os que medem o preço justo de uma coisa segundo o trabalho, custos e riscos em que incorre quem produz a mercadoria cometem um grave erro; porque o preço justo nasce da abundância ou falta de mercadorias, de empresários e de moeda, e não dos custos, trabalhos e riscos” (Saravia de la Calle, 1949: 53).Além disso, todo o livro de Saravia de la Calle se centra sobre a função do empresário, que ele denomina “mercader”, seguindo assim a já mencionada tradição escolástica sobre o papel dinamizador do empresário que remonta a Pedro João de Olivi, Santo António de Florença e, principalmente, São Bernardino de Sena (Rothbard, 1999: 113-121).Outra notável contribuição dos nossos escolásticos foi a introdução do conceito dinâmico de concorrência (em latim, concurrentium), entendida como o processo empresarial de rivalidade que move o mercado e impulsiona o desenvolvimento da sociedade. Esta ideia, que haverá de converter-se no coração da teoria do mercado da Escola Austríaca, contrasta radicalmente com os modelos de equilíbrio de concorrência perfeita, monopolística e de monopólio analisados pelos neoclássicos, e levou também os escolásticos a concluir que os preços do modelo de equilíbrio (que eles denominaram “preços matemáticos”), que os teóricos neoclássicos socialistas pretenderam utilizar para justificar o intervencionismo e a planificação do mercado, nunca poderiam chegar a ser conhecidos. Assim, Raymond de Roover atribui a Luis de Molina o conceito dinâmico de concorrência entendida como “o processo de rivalidade entre compradores que tende a elevar o preço”, e que nada tem a ver com o modelo estático de “concorrência perfeita” que, no século XX, os denominados “teóricos do socialismo de mercado” ingenuamente acreditaram poder ser simulado num regime sem propriedade privada (Raymond de Roover, 1955: 169). Apesar disso, é Jerónimo Castillo de Bovadilla quem melhor expõe esta concepção dinâmica da livre concorrência entre empresários no seu livro Política para corregidores, publicado em Salamanca em 1585, onde ele afirma que a mais positiva caracterísctica da concorrência é conseguir “emular” o concorrente (Popescu, 1987: 141-159). Castillo de Bovadilla enuncia ainda a seguinte lei económica, base da defesa do mercado por parte de todo o economista austríaco: “os preços dos produtos baixarão com a abundância, emulação e concorrência de vendedores” (Castillo de Bovadilla, 1985: 2, cap. 4, nº 49).Quanto à impossibilidade de os governantes ou os analistas chegarem a conhecer os preços de equilíbrio e os demais dados de que necessitam para intervir no mercado ou para elaborar os seus modelos, destacam-se as contribuições dos cardeais jesuítas espanhóis Juan de Lugo e Juan de Salas. O primeiro, Juan de Lugo (1583-1660), questionando-se sobre a determinação do preço de equilíbrio, já em 1643 havia concluído que depende de uma tão grande quantidade de circunstâncias específicas que apenas Deus o pode conhecer (“pretium iustum mathematicum licet soli Deo notum”) (Lugo, 1642: vol. II, 312). O segundo, Juan de Salas, em 1617, referindo-se à possibilidade de que um governante possa chegar a conhecer a informação específica que dinamicamente se cria, descobre e usa no mercado, afirma que “quas exacte comprehendere et ponderare Dei est non hominum”, ou seja, que apenas Deus, e não os homens, pode compreender e ponderar exactamente toda a informação e o conhecimento que é usada no processo de mercado pelos agentes económicos com todas as suas circunstâncias particulares de tempo e de espaço (Salas, 1617: 4, nº 6, 9). Como veremos, tanto Juan de Lugo como Juan de Salas antecipam, em mais de três séculos, as mais refinadas contribuições dos mais destacados pensadores austríacos (especialmente Mises e Hayek).
Fonte: http://www.mises.org.br/
Sávio,
ResponderExcluirExcelente postagem. Ela deveria ser lida pelos "dinossauros" que abundam nas universidades públicas.
Não diga isso Armando! Esses dias quase fui "excomungado" do departamento de geografia quando falei algo sobre a escola austríaca e sua omissão no discurso geográfico.
ResponderExcluirLogo postarei a segunda parte do artigo.
Um forte abraço.