A manhã de outubro era de sol aceso e céu sem nuvem no cariri cearense. O carro não agüentou o tranco e parou no meio daquela estrada de chão rachado, de barro e pedregulhos que nos levaria pra Serra de Santana, alguns quilômetros depois de Assaré que havíamos deixado prá trás. Foi demais praquele corcelzinho branco ano 72 que arrumamos pra enfrentar a nossa produção cinematográfica amadora. Rosemberg e Serginho aproveitaram a parada pra fazer umas fotos do ambiente árido da caatinga (mandacarus em flor, alguns calangos, uns preás, um gavião branco, uma carcaça de boi, e por ai vai) enquanto Bola e Zé Roberto pelejavam pra descobrir a razão do “prego”. Eu também fiz umas fotos de umas crianças e de um cachorro que nos observavam curiosos sem entender aquele desmantelo. Nada nos tirava do sério naquela bendita semana porque estávamos finalmente - depois de alguns meses de trabalho com muitas idas e vindas de Fortaleza para o Crato e Assaré – tendo a oportunidade de concluir um documentário sobre a vida de um poeta genial e filósofo sertanejo que a nossa geração aprendera a admirar: Patativa do Assaré. O filme já fora batizado como “Passarim do Assaré”, um media-metragem que numa bitola super-8 era a nossa experiência possível de fazer cinema na época. A cada dia de nossa convivência com Patativa a gente se sentia mais animado pelo encantamento que nos causava seu carisma e sua extensa e nobre obra poética. Depois de uma meia hora, Bola deu o veredicto sobre o carro: - A bobina esquentou! Em seguida, comandou: Vai Zé (Roberto), faz uma rodilha de tua camisa e traga ela molhada pra gente resfriar a bobina. Zé era o assistente de produção e contra- regra (faz tudo) do filme e, mesmo a contragosto, não podia contrariar a ordem. Deu certo! Alguns minutos depois retomamos o caminho que nos levaria ao sítio na Serra de Santana pra vivenciar por três dias com Patativa, Dona Belinha (esposa), família e todo aquele ambiente rural de grande beleza, simplicidade, alegria e de completa inspiração praquele menestrel do sertão. Saímos da estrada principal, entramos em sítios, abrimos e fechamos muitas porteiras e cancelas até avistarmos a casa do poeta que se assentava sob um calçadão alto cimentado e um teto de palhas e telhas. A pintura nova de cal amarelado pelo barro vermelho que escorrera do teto no inverno passado, não escondia o reboco na parede torta de taipa. Estacionamos o carro sob a sombra da copa de um tamarineiro frondoso e lá descarregamos nosso equipamento: um tripé bem pesado, uma câmera Cannon super-8, duas folhas de isopor para o rebatimento de luz, uma câmera fotográfica Pentax-35mm com tele-zoom, muitas caixinhas de filme virgens e uma indescritível euforia pelo momento que compartilhávamos. Estávamos no descarrego de mochilas e equipamentos quando no contra luz do sol, alguns metros a nossa frente, desponta a monumental figura do poeta camponês, de enxada no ombro, bornal, cabaça na cintura, caxingando pelo caminho que o levava e trazia da roça. Foi uma correria louca pra registrar aquela imagem. Ao mesmo tempo, todos percebemos a beleza e naturalidade daquele momento e nos aperreamos querendo transformá-la em cena do filme..., mas ficamos tão agitados a ponto de a câmera não aceitar o rolinho da película. Tivemos que só contemplar o momento e memorizá-lo. Patativa se aproximou e com um inefável sorriso foi logo nos dando um carão: - O café esfriou, mas o almoço já ta quente! É que a gente tinha prometido chegar bem cedo no sítio, o que não aconteceu. Contamos a estória da pane no carro e nos desculpamos. Depois de um dedo de prosa debaixo do tamarineiro, o poeta nos convidou pra entrar e ocupamos um quarto dos dois que tinha a casa. Era uma casa muito simples e agradável, com muitos armadores pra redes no salão de entrada que também abrigava a colheita da roça (milho, feijão, andu, jerimum, etc.). Dona Belinha, a esposa, nos recebeu com igual delicadeza e de mesa posta para o almoço de galinha caipira ao molho pardo, feijão de corda com toucinho, farofa de pão de milho, macarrão com muito colorau passado na manteiga da terra e doce de leite ou mamão com coco de sobremesa. Uma mesa farta e generosa como a alma do sertanejo! Sem perder tempo já começamos o registro de imagens desses momentos da vida em família do poeta. Dona Belinha – esposa venerada por Patativa em prosa e verso- era todo o tempo silenciosa, mas, naquele silêncio, passava pra gente o quanto se dedicava e tinha admiração pelo esposo. Nos três dias que ficamos neste convívio aprendemos a admirá-la e criamos uma afeição especial por ela, mulher, mãe zelosa, avó e, acima de tudo, companheira exemplar do tipo que está sempre ao lado do marido “na alegria e na tristeza, na saúde e na doença...” Foi no café da manhã de um desses dias que comi pela primeira vez uma tapioca misturada com amendoim torrado feita pela Dona Belinha. Uma tapioca com gosto de poesia! Depois do almoço, armamos rede no salão e, como todo sertanejo que se preza, puxamos um leve ronco até as duas da tarde quando uma dupla de cantadores bateu a porta da casa pra homenagear o Patativa e dividir com ele algumas prosas e cantorias. Desarmamos as redes numa ligeireza danada e montamos um “set” no calçadão de lado da casa onde a luz do sol imprimia belas imagens e, naquela tarde inesquecível, gravamos cantorias dos repentistas/violeiros, depoimentos e declamações do poeta até quando a luz nos permitiu. Chegou a noite. Depois de um café forte com pão de milho, leite de vaca fervido, ovos estrelados e queijo de coalho, ficamos de conversa fiada e camaradagem com muitos compadres e comadres do Poeta e de D. Belinha até umas horas. Todos se mostravam curiosos a respeito do filme e queriam saber se o filme ia passar na televisão, na Globo, etc. A gente até admitia, meio sonhador, que “um dia” o filme poderia passar no cinema e na televisão de um Brasil com liberdade de expressão, o que não era o caso daqueles tempos de exceção que vivíamos no final dos anos 70.
No dia seguinte, cedinho, madrugada ainda, acompanhamos Patativa na sua lida de roceiro, uma vida de homem simples que da terra tirava o sustento e também a inspiração pra sua lira nordestina. Depois, gravamos cenas em outros ambientes familiares, sua vida compartilhada com outros camponeses e poetas e a sua empatia e clareza na compreensão da natureza, dos bichos e das plantas e dos homens em comunhão com Deus.
Durante a realização do filme, Patativa nunca reclamou da nossa direção e parecia adivinhar que aquele registro cinematográfico seria o primeiro de muitos que viriam pela frente e que, de outra maneira seu discurso social seria amplificado e se irradiaria mundo a fora e o elevaria a condição de mito.
Somente no terceiro dia é que conseguimos gravar a imagem majestosa do luminar poeta a caminho da roça no contra luz do sol.
A EQUIPE DESTA VIAGEM:
Rosemberg Cariry – roteiro e direção
Jacksom (Bola) Bantim: Câmera 1, motorista e Assistente de produção
Zé Roberto França : Assistente de Produção e contra-regra
Serginho Pereira: still (fotografia de cenas)
Luiz Carlos Salatiel: Assistente de direção, produção executiva, câmera 2 e
still.
NOTAS:
-As imagens originais desta realização constam do filme Ave Poesia- Patativa do Assaré, documentário realizado por Rosemberg Cariry, em cartaz nos cinemas do país;
-A foto que ilustra a matéria é de Sérgio Pereira, e foi clicada durante a realização do filme “Passarim do Assaré”.
-A foto que ilustra a matéria é de Sérgio Pereira, e foi clicada durante a realização do filme “Passarim do Assaré”.
Luiz: cinema no Brasil está tão difícil que é muito raro que a exibição cubra os custos de produção. Aqui não tem a superindústria do mechandising, dos produtos cruzados como trilha sonora, camisetas e outras traquitanas mais. Nem produtores de renome conseguem empatar um trabalho economicamente. Se não fosse as empresas estatais e o próprio governo com a renúncia fiscal o cinema aqui entre nós já tinha morrido. Nem a globo com a infra que tem conseguiria.
ResponderExcluirAgora sobre o filme do Rosemberg. Tive notícias do lançamento dele em Recife, especialmente pelo Joaquim Pinheiro, mas neste final de semana, numa conversa com um típico sujeito da zona sul do Rio ele me deu notícia do filme. Não é nada, nada mesmo, mas mostra a assimetria entre a exibição e ointeresse. A estrutura de exibição está voltada para um público consumidor muito fechado com a produção americana e raramente gosta do cinema brasileiro. Estas salas de shopping são uma desgraça para o cinema. Precisamos estudar mais o fenômeno do cinema popular na Índia e particularmente entender alternativas de exibição.
Algumas produções cearenses de boa qualidade estão engavetadas porque não encontram empresas interessadas em distribuí-las nas salas do país. Dois longas realizados pelo Rosemberg depois de Corisco e Dadá (Cine Tapuia e Lua Cambará) não conseguiu exibição em salas brasileiras. No entanto, as produções da Globo, com elenco das novelas recebem tratamento VIP. A gente que faz arte sabe que a diversão agrada mais que a introjeção.
ResponderExcluir"A diversão agrada mais que a introjeção "... É vero !
ResponderExcluirLembro os tempos de Luiz Severiano Ribeiro... Meus pais tinham como devoção diária nos ninar bem cedo , vestir os melhores costumes , e pegar o beco do cinema. Minha mãe adorava os jornais franceses, exibidos antes do filme... Pois então ... E essa cultura de viver o entretenimento , de viver as relações , de achar tempo para a diversão associada à introjeção ... Onde foi parar ?
Nunca perdi o olhar ensimesmado do meu pai , quando caricaturava o rosto dos seus ídolos ,ou desenhava , nas toalhas de mesa da nossa casa, os rostos das estrelas de Hollywood.
A net, os joguinhos eletrônicos, fez a última geração , viajar na maionese. Claro que existem ganhos...Mas , e as perdas ? Nem Lya Luft conta !
Salatiel , meu anjo... Quando chega o trem da tua volta ?
"... E, se depois de um ano
eu não vindo...
Ponha a roupa de domingo ...
E pode me esquecer ..."
Beijo .
Socorro Moreira
Luiz,
ResponderExcluirMais um dedo de prosa...
Lembro o tempo em que te perdíamos para as filmagens nesses sertões infindos. Pra ser sincera, ainda quero o gosto maior dos resultados... Preciso rever , ver, rever... Você , Rosemberg ...
Enquanto isso , segura essa letrinha do Chico:
Canção de Pedroca
Chico Buarque
Composição: Chico Buarque/Francis Hime
Quando nos apaixonamos
Poça d'água é chafariz
Ao olhar o céu de Ramos
Vê-se as luzes de Paris
No verão é uma delícia
A brisa fresca de Bangu
Mesmo um cabo de polícia
Só nos diz merci beaucoup
Eu ouço um samba de breque
Com Maurice Chevalier
Bebo com Toulouse Lautrec
No bar do Caxinguelê
Daí ninguém mais estranha
O Louvre na Praça Mauá
E o borbulhar de champanha
Num gole de guaraná
Cascadura é Rive Gauche
O Mangue é Champs Elisées
Até mesmo um bate-coxa
Faz lembrar um pas-de-deux
Purê de batata roxa
Parece marron glacé
Abraços,
Socorro Moreira.