quinta-feira, 16 de abril de 2009

Nonato velho de guerra


A natureza humana é revestida de muitos mantos. A parte visível e superficial do nosso caráter é apenas a mais angelical, lá no fundo escondem-se e dissimulam-se todos os nossos demônios. O mais das vezes, as pessoas tidas como perigosas, loucas e pervertidas são simplesmente aquelas que não conseguem acorrentar suas feras interiores. Mas mesmo aquelas tidas como dóceis, meigas e perfeitamente normais, de vez em quanto, rescendem , a contra gosto, um cheirinho de enxofre. A primeira impressão que se tinha de Padre Nonato, ao se chegar a Matozinho, não era das melhores. Vigário da cidade há uns dois anos, nosso pároco era meio agoniado, vexado e algumas outras explosivo. Suas histórias já haviam preenchido todos os livros do folclore regional. Esta primeira impressão, no entanto, desvanecia-se quando se convivia mais perto com nosso Nonato. Mostrava-se um doce servo de Deus. Amigos dos pobres, abrira seu templo, preferencialmente, aos desfavorecidos deste mundo. Atendia-os com uma presteza impressionante. Como pastor, estava de plantão as vinte e quatro horas. Além de tudo, levava uma vida beneditina. Batina esfarrapada, casa paroquial humílima, parecia um cínico ateniense. Nunca se soube, também, de nenhum desvio seu que atentasse contra a moral e os bons costumes. Além , claro, de um ou outro destempero, quando flagrava o rebanho a saltar as cercas erguidas pelos livros sagrados. O único meio de transporte que utilizava, além dos pés, era uma velha lambreta que dirigia sem nenhuma perícia e que já computara inúmeras infrações: atropelamento de galinhas e porcos, desembesto em ladeiras e rampas, manobras radicais em meio de feira. Padre Nonato nunca conseguira decorar bem onde ficava o acelerador , a embreagem e o freio da velha “Vespa”.
As histórias que coletamos em Matozinho e aqui fazemos registro fazem parte da memória afetiva da vila e são contadas de boca em boca reverenciando de um lado a suposta “doideira” do nosso sacerdote, mas sempre tentando mostrar um ar de santidade por trás do aparente desequilíbrio. Em Matozinho, após sua morte, Nonato tornou-se um santo popular, obra milagres e seu túmulo apinha-se de ex-votos e oferendas. O povo percebia que , no nosso padre, a superfície apresentada não se mostrava muito diferente das profundezas mais recônditas de seu caráter.
Ainda no início das suas atividades evangelizadoras em Matozinho, Nonato recebeu, à noite, um telegrama que o preocupou. Fora endereçado por um sobrinho seu que estudava em um seminário na capital. Pedia sua presença com urgência. Nosso pastor imaginou tratar-se de problemas relacionados à saúde do menino e partiu utilizando a única forma de transporte disponível. Saiu pegando inúmeras caronas com caminhoneiros. Três dias depois, às doze da noite, foi que conseguiu chegar. Dirigiu-se, aflito, diretamente ao Seminário com fins de tomar pé da situação. Acreditou que talvez o menino estivesse interno e aventava até a possibilidade de cirurgia e morte. O vigia, no entanto, após a identificação, avisou que o seminarista estava bem e dormindo. Nonato pediu que o homem o despertasse, pois havia sido chamado com urgência. Após alguns minutos, o sobrinho, de olhos inchados, bocejante, veio ao seu encontro e tomou-lhe à bênção. . Nonato, então, o interrogou sobre o motivo do chamado :
--- Pronto, meu filho ! Vim com urgência ! O que aconteceu ?
O sobrinho, titubeante, tentou explicar:
--- Não, tio, não é nada demais, é que eu descobri que não tenho vocação para ser padre ...
Nonato, então, não suportou a besteira do sobrinho.
--- Tá ficando doido, menino ? Me manda chamar de tão longe por causa de uma besteira dessas ? Eu que tenho trinta anos de padre ainda não sei se tenho vocação, você já quer ter esta certeza no Seminário Menor ?
Havia um sacramento que Nonato cultivava por especial : o Batismo. E aí ele tinha uma verdadeira implicância com os nomes que os matozenses escolhiam para batizar os inocentes. Vivendo nuns confins daqueles, o povo começou a apresentar a progressiva mania de escolher nomes estrambóticos para os filhos arrancados geralmente da televisão, do cinema e do Show Bussiness. Parece que isso lhes imprimia um certo ar de nobreza e majestade. E aí começaram a surgir verdadeiros estapafúrdios: primeiro porque a população não entendia bem os nomes que pulavam da TV e, depois, porque os tabeliães não haviam sido reciclados em línguas estrangeiras várias: inglês, Alemão, espanhol, Russo. Nosso padre entendia que um pobre rebento que já nascia carregando o peso de um pecado cometido ainda no Gênesis, não merecia a pena de carregar consigo um nome que . algumas vezes , surgia como um verdadeiro Karma. Na hora da pia batismal, o diálogo era inevitável :
--- Qual o nome que vocês escolheram para o bichim ?
--- Yakosdgovsky, seu padre !
--- Ya, o quê ? Tá ficando doida ? E isso é lá nome para os pé rapado aqui de Matozinho ? Mundim te batizo , em nome do pai, do filho, do espírito santo ! Outro !
A história mais clássica do nosso Nonato passou-se na celebração do casamento de Gilbertina , a filha do Coronel Uglino Mangabeira, um dos homens mais temidos da cidade. O velho era mais positivo do que núcleo de átomo. Pois bem, Gilbertina engraçou-se de Filé, filho do Cel Filismino Saturnino, antigo chefe político da cidade e o namorico terminou nos pés do altar. Gilbertina , menina prendada, carregava consigo um grande defeito: era ciumenta como galinha choca.
Toda a sociedade da redondeza havia sido convidada para o grande enlace matrimonial. Dia de festa, Padre Nonato celebrava a solenidade com todo o aparato ritualístico que a ocasião exigia. Ao chegar na hora do “Sim”, Filé, com um sorriso, confirmou sua pretensão em desposar a noiva. Gilbertina, no entanto, sabe-se lá porque, lembrou-se de um suposto namoro do noivo, antes mesmo da sua administração. Na hora h , descobriu-a no meio dos convidados e, furiosa, à pergunta solene do padre, respondeu asperamente :
--- Aceito não !
Imaginem o tamanho do escândalo , do mal-estar das duas famílias. A festa cancelada, choro pra tudo quanto é lado. Agressões verbais, a partir dali, se acentuaram entre as famílias de Uglino e Filismino. Na cidade, a fábrica de boatos trabalhou a todo vapor, principalmente incentivada por aqueles que não haviam sido convidados para o rega-bofe. Passados alguns meses, no entanto, a turma do deixa-disso começou a atuar e terminaram aproximando novamente Filé e Gilbertina. Um semestre depois, resolveram novamente retornar ao altar. Convocaram Nonato que meio cabreiro aceitou novamente a peleja. Num belo domingo de maio , repetiu-se o cenário matrimonial na Igreja da Sé de Matozinho. Aparentemente tudo transcorria sem intercorrências maiores. A mocinha, motivo da dissensão anterior, desta vez havia sido cuidadosamente esquecida. Nonato, algo temeroso, preferiu perguntar inicialmente a pretensão casamentícia à Gilbertina que respondeu forte pela aceitação. Nonato respirou aliviado e virou-se candidamente para Filé, fazendo a pergunta fatal . Filé, então, neste átimo, lembrou de toda vergonha que havia passado na tentativa de casamento anterior, tendo sofrido quase uma execração pública. Na hora da resposta, desta vez, foi ele que refugou :
--- Aceito , não, seu padre !
O escândalo, desta vez, foi fenomenal. Os familiares quase que se engalfinham dentro do templo. Nonato , acalmados os ânimos, saiu fulo da vida. A fofoca novamente tomou conta da cidade e o assunto animou as rodas de praça e de bar por mais de um semestre. Mas Filé e Gilbertina tinham algo a seu favor, apesar de todas as confusões se amavam de verdade e mais uma vez, arrefecidos os ânimos, as alcoviteiras retomaram o trabalho. Pronto, estavam todos vingados, o Placar era de 1 X 1 ! Tanto fizeram que resolveram novamente voltar ao altar. O problema era um só: convencer Nonato a pagar um outro mico ! A missão coube aos dois maiores bigodes de Matozinho : Uglino e Filismino. Dirigiram-se a ele com um certo receio, mas ficaram surpresos com a receptividade. Ele disse que ia com o maior gosto desse mundo.
Remarcada a data, reconvidados todos. O templo, agora , estava apinhado também de muitos curiosos. No momento solene, Nonato demonstrava uma tranqüilidade totalmente inesperada. Fez a pergunta a Filé que confirmou a vontade de contrair núpcias com Gilbertina. Esta , por sua, vez, confirmou fortemente a intenção de se unir eternamente à Filé. Toda a igreja, familiares , convidados e curiosos respiraram aliviados. Faltava apenas a bênção final de Padre Nonato. Ele , calmamente, fitou os dois nubentes, a platéia e fechou a cerimônia :
---- Todos querem, não é ? Pois agora quem não quer é Nonato velho de guerra.
Pegou a bíblia, o cálice e foi-se embora sem dar mais uma palavra.
J. Flávio Vieira

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