quarta-feira, 1 de abril de 2009

Os mortos da nossa felicidade

Neste 31 de março faz exatos quarenta e cinco anos que se instalou a revolução militar no Brasil, com a deposição do presidente João Gullar. Uma plúmbea nuvem negra cobriu o Brasil por exatos 21 anos. Congresso fechado, cassações, censura prévia, perseguições políticas, tortura e morte de simples adversários do regime. Criaram-se o pânico e a paranóia. O saldo foi terrível : mais de 2000 civis mortos ou desaparecidos , pessoas presas sem qualquer acusação plausível, o aborto de muitas gerações de lideranças estudantis sob o domínio implacável do coturno e do fuzil. Sem falar num número incontável de mutilados física, mental e espiritualmente pela tortura. Como se dizia , na época, a partir de duas pessoas conversando a polícia já considerava concentração e , mais de três, passeata.
O regime de terror fez despertar na alma dos brasileiros sentimentos antagônicos e a população civil dividiu-se, rapidamente, entre subversivos, indiferentes e dedos-duros. Todos passaram a ser suspeitos de todos, mesmo com prova em contrário. Os que viveram aqueles tempos de chumbo percebem, claramente, o valor da liberdade e ,hoje, imersos na paz alcançada, já têm dificuldade de contar aos filhos os difíceis e espinhosos caminhos trilhados desde 1964.Armadilha do destino : os nossos maiores bens espirituais só mostram definitivamente seu valor quando os perdemos.
Com distanciamento , hoje, após tantos anos, é mais fácil se depreenderem algumas lições da ditadura. O culto da verdade única é uma falácia. Alguns dos nossos ilustres presos e perseguidos cratenses mostraram-se, com o tempo, grandes cidadãos brasileiros : Dr. Marcos Cunha, Valdenor Farias, Ernani Silva, Dr. Raimundo Bezerra, Luiz Cláudio (“Bola Sete”), Sílmia Sobreira, Seu Elói Teles, Dr. Welligton (Ton-Ton),Juvêncio Mariano e tantos outros. Para decepção dos nossos alcagüetes famosos, os comunistas cratenses não comiam criancinhas, apenas sonhavam com um idílico mundo onde os meninos pudessem se alimentar melhor. Depois , a censura apenas estimula a criatividade das pessoas e fica patente que é impossível exercê-la de modo efetivo. Nada de bom floresce sob a ditadura, é que partindo , logicamente, de premissas falsas , jamais ninguém se pode acercar da verdade.
Creio que foi Silvio Rodriguez que ,em uma das suas mais famosas canções, dando graças pela liberdade em que vive agradece àqueles que deram sua vida pela felicidade das outras gerações : “Los muertos de mi felicitá”. Após mais de quatro décadas, imagino que seria importante lembrar aqueles nossos irmãos que , arriscando a vida , lutaram por um país melhor e mais justo. Abandonaram os lares, a comodidade da vida familiar, a vidinha previsível que todos nós levamos e partiram para a luta. Recordemos que hoje, quando falamos o que bem entendemos nas esquinas, quando reclamamos do governo na imprensa livremente, quando não temos a defesa cerceada, devemos muito a estes esquecidos e abnegados que sacrificaram anos de estudo, de vida profissional e tantos e tantos, a própria vida para que hoje a gente pudesse gozar de um benfazejo clima de liberdade.
Em Crato é preciso exaltar o nome de dois gigantes que honraram o nome dos nossos conterrâneos revolucionários de 1817. O primeiro, Aécio Gomes de Mattos, líder estudantil em Recife, preso nos anos 70 e que perdeu vários anos da Faculdade de Engenharia . Ainda hoje ele tem seu nome lembrado no Restaurante Universitário daquela Universidade. O outro : João Roberto Pinho, filho do Cel João de Pinho que já fora este prefeito em Crato. João Roberto integrava um dos Partidos proscritos pela pseudo-revolução e que teve pesadas baixas: o PCBR. João passou nove anos na clandestinidade, jogando para o alto toda a vida estudantil. Após a anistia fixou-se no Rio como artesão e vinha periodicamente ‘a terrinha. O destino lhe foi ingrato e já com os louros da liberdade conquistada faleceu, precocemente, ainda nos anos 80. O Crato esquece-o como fez com outros heróis verdadeiros. Em nome de toda minha geração, hoje, passados quarenta e cinco anos, agradeço a eles pelo inconformismo, pelas lições de que é preciso lutar por aquilo que se acredita e , mais, que para fazer nascer um mundo mais respirável e respeitável faz-se mister usar o fórceps.Obrigado, de coração, por terem trocado o sofrimento de vocês por nossa felicidade ! Lutaremos para ser dignos da liberdade que vocês nos ofertaram !

J. Flávio Vieira

4 comentários:

  1. Zé: recém entrado na faculdade de medicina em Fortaleza, vinha de ônibus para casa. Entrei no ônibus e vi Zé Roberto sentado lá naquele bancão do fim do ônibus. Ele muito tímido, isso era 1969 (AI5 a pleno vapor), com o corpo se escolhendo como se fosse receber os cassetetes da repressão a qualquer momento. Conversamos por mais de 15 minutos, papo franco, ele tentaria se esconder no Uruguai. Lembro quando desci e ele, continuando a viagem, me olhou com um olhar de profunda melancolia. Vi Zé, de quem fui comtemporâneo mais jovem, saindo da minha vida como faziam aqueles migrantes para o Paraná se despedindo na Varzealegrense para sempre.

    Um breve comentário. O autoritarismo, a ditadura, o totatalitarismo são críticas em si. Não cabe o relativismo do autoritarismo, também ideológico, do outro lado. Não é possível que cabeças pensantes, que procurem analisar a liberdade, embarquem no velho argumento do presidente do Clube Militar: fizemos a ditadura para evitar que o país virasse uma Cuba. Claro que para o militar Cuba é a referência de autoritarismo para justificar a própria. É o típico argumento eu vou te matar pois sei que o outro o matará.

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  2. Salve a todos que lutaram nessa época. Dos injustiçados por nem terem se envolvido em nada de fato aos que conscientemente lutaram contra o terror.

    Sou de outra geração, mas faço a minha reverência aos que viveram e lutaram e ainda lutam.

    Abraços.

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  3. Agradeço ao Darlan e ao Zé do Vale pelos comentários. O João roberto era na verdade uma figuraça. Inteligente, gozador, bem humorado e com uma imensa sensilidade social. Já depois da anistia, encontrei-o no Grangeiro, com meu pai, o velho Mané Vieira que havia sido seu professor e muito a admirava. Estava puto com o alfredo Syrkis que havia lançado seu livro de memória e, pela primeira vez, revelado a casa onde ficara sequestrado o embaixador dos EUA no Rio. Havia um pacto tácito entre todos para nunca o fazer e João achou que ele fora sacana, ao quebrá-lo. O velho Mané vieira ficou triste quando soube que ele vivia no Rio de artesanato. ele notou a preocupação e o tranquilizou: era legal, tava feliz e dava uma grana boa. sua memória não podes er esquecida.

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  4. Dr. Flavio.

    O Ultimo a deixar a prisão foi o Eloi Teles,caboclo do sitio Baraúnas e Varzea-Alegre. Veja este verso do Eloi:

    Cadeia estas tuas grades
    Prendem o meu corpo revolto,
    Porem tu não sabes cadeia
    Que o meu ideal está solto....

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