Patativa do Assaré - Ave Poesia
O dito pelo não dito
Patativa do Assaré já não se pertence mais, o materialismo histórico já providenciou o esvaziamento de sua propriedade. Até mesmo a obviedade canastrona das metáforas do homem pássaro e da poesia alada já perdeu o protocolo de posse e grilagem. Sobre o ícone histórico de um dos maiores poetas brasileiros paira uma solerte sombra de reforma agrária do seu legado poético, em que o aparelhamento de sua imagem e do seu prestígio atende aos mais diversos fins, como se a história fosse um pano de cozinha capaz de ser retorcido ao extremo. O documentário “Patativa do Assaré – Ave Poesia”, de Rosemberg Cariry, é um exemplo desse processo de reificação do poeta.
Ao término da exibição do filme, a sensação que o espectador mais desavisado tem é que Patativa do Assaré só não fez parte da resistência armada contra a ditadura militar, em grupos como o MR-8, VPR ou VAR-Palmares, por puro capricho do destino, que em espetaculosa chantagem emocional existencialista o transformou em um poeta cantor do pathos das vítimas da exploração latifundiária e da escravidão capitalista, ainda reservando uma canonização heróica, dentro da mais pura utopia romântica revolucionária. Reduzir a esse patamar a vida e a obra de um dos mais profícuos poetas do século XX é tentar engarrafar mil rosários, trezentas enxadas, oitocentas rabecas e mais trinta mil chapéus de palha, em uma garrafa pet e vender como souvenir em um congresso de um partido populista de esquerda qualquer.
O cineasta Rosemberg Cariry não consegue ultrapassar as fronteiras amareladas do Cinema Novo e sua concepção nacionalista de que o homem novo surgiria messianicamente do seio do povo, das entranhas das raízes populares da cultura, o único portal cósmico capaz de formatar a verdadeira identidade brasileira. Essa postura ideológica de esquerda, às vezes festiva, de encontrar a legítima essência brasileira a partir de uma celebração inconteste das camadas populares e suas respectivas culturas foi fomentada e sedimentada principalmente nas fileiras dos Centros Populares de Cultura, do Partido Comunista, e da célebre Revista Civilização Brasileira, entre 1968 e 1978, através de artigos de autores da resistência intelectual como Octavio Ianni, Roberto Schwarz, Heloísa Buarque de Hollanda e Ferreira Gullar, entre outros. A partir daí nasceram e cresceram as inúmeras diluições sectárias do herói brasileiro, ora com fundamentações marxistas-lenistas, ou maoístas, ou trotskistas, ou de outras vertentes mais incautas ou mais caricaturais.
Por um lado, algumas idiossincrasias chamam a atenção nesse documentário, às vezes pela ironia da própria história desapropriada, às vezes pela ironia apropriada pela própria história. De fato existe esse aspecto de crítica social na obra do maior poeta cearense, vivo ou morto, com ou sem recompensa. Não há como refutar isso. Mas também é fato que a trajetória literária e existencial do poeta é muito maior e muito mais diversificada, é um trem com diversos vagões e diversas estações, nem sempre concatenadas com esse ideário criado para ele, como uma aureola redentora. Dentro do contexto geral do documentário não dá para disfarçar, por exemplo, a dicotomia escatológica da imagem de Tarso Gereissatti e alguns outros políticos da mesma estirpe rodeando o caixão do poeta mitografado em seu velório.
Por outro lado, algumas imagens escolhidas do poeta são formidáveis, bem como algumas figurações são indeléveis. No que pese a força criativa de um poeta inspirado e desimpedido pelas amarras da totalização cultural, em que o produto vale muito mais do que o produtor, todas as recitações do poeta são marcadas pela legitimidade, pela honestidade e pela dignidade de um homem supremo em sua arte de analisar o mundo que o rodeia e o concebe. A poesia de Patativa do Assaré é bem maior do que uma cicatriz marcada por um regime político de exceção, não menos descomunal é sua simplicidade em cenas domésticas. Ele sim, em sua plenitude criativa e existencial, carrega em si uma dramaticidade repleta de vigor, capaz de emocionar até mesmo o mais anacrônico dos comunistas.
Título Original: Patativa do Assaré - Ave Poesia
Gênero: Documentário
Tempo de Duração: 84 minutos
Ano de Lançamento (Brasil): 2009
Estúdio: Cariri Filmes / Iluminura Filmes
Direção: Rosemberg Cariry
Roteiro: Rosemberg Cariry
Produção: Petrus Cariry e Teta Maia
Música: Patativa do Assaré, Fagner, Fausto Nilo, Mário Mesquita, Ricardo Bezerra, Pingo de Fortaleza e irmãos Aniceto
Fotografia: Jackson Bantim, Ronaldo Nunes, Beto Bola, Kin, Rivelino Mourão, Luiz Carlos Salatiel e Fernando GarciaEdição: Rosemberg Cariry
A culpa é sempre dos comunistas!!!
ResponderExcluirMalditos... hehehehe
Marcos Vinicius Leonel:
ResponderExcluirA fonte da inspiração,
A beleza do texto,
O seu estilo agradável,
produziram uma excelente postagem.
Gostei de ler.
Pois é Darlan,
ResponderExcluiro que mais chama a atenção é a fragmentação feita por eles.
abraços
Valeu Armando.
ResponderExcluirUm abraço.
Eu "to" entre eles.
ResponderExcluirCoitado é do materialismo histórico que é atacado por tudo que é lado.
rsrs
Leonel: bom abrir o cariricult e reencontrá-lo por aqui. Aliás uma coisa que já podemos computar neste site é que aqui nenhum tema é tabu e por demonstração prática ninguém deixa de fazer sua análise. Não vi o filme analisado por você, outro dia assisiti a uma matéria com o Rosemberg na Globo News e culturalmente o conteúdo bateu com a realidade do poeta e do seu próprio contexto caririense, pelo menos como se refletiu em mim. Agora uma coisa que devemos levar em consideração, e peço ao Darlan que aprofunde um pouco mais no texto do Leonel, é a natureza da crítica feita aqui. Não há como negar que a "leitura" dos anos 60, tanto dos CPC ou de Glauber são históricas, e difícil de se transportam para o mundo atual. A crítica do Leonel (volto a dizer não vi o filme) ao romantismo revolucionário é uma das mais célebre feitas inclusive entre revolucionários, especialmente onde a auto-crítica era prática. Por último ao Leonel gostaria de levar em consideração alguns aspectos da própria obra de Patativa, com quem convivi, quase diariamente por aproximadamente três meses. Patativa tinha a malícia do mundo. Recebeu todas as influências das reformas dos anos 60, basta dizer que era parente próximo de Miguel Arraes e portanto partícipe naqueles idos dos debates das questões camponesas e da influência de esquerda. Não era um militante, nunca foi, mas este pensamento se refletia na obra. Um dia José Arraes, irmão da mãe de Miguel, homem erudito (era filólogo) e muito católico deu um mote ao poeta: o Céu, Purgatório e Inferno. Você sabe como ele politizou o tema, se afastando, no meu modo de ver das escolhas de José e o poeta ria da sua reação. Pelo que sei, e o que sei pode ter muito erro dado que deixei a região há muito tempo, o poeta teve (no tempo que pude controlar) duas fases: uma em que era o poeta efetivamente popular, que aparecia por força de Elói Teles e das prórias rádios, que publicou seu primeiro livro no Instituto Histórico do Cariri, participava da vida cultural das pequenas cidades e que por uma tentativa de retornar do Luiz GOnzaga teve a sua triste partida gravada; esta fase parece bem diferente desta das novas gerações, quando virou o "queridinho" das classes médias urbanas em busca de uma identidade perdida, do teatro José de Alencar, do Fagner e claro do Tasso no seu enterro.
ResponderExcluirLeonel: parabéns pela bem construída crítica cultural. Fundamentada e equilibrada. Digna deste ambiente diverso do Cariricult e de qualquer grande meio de publicação nacional, aquele com mais peso na formação de opinião.
Valeu, José do Vale, grande abraço.
ResponderExcluirDesculpe a demora em responder ao seu comentário, é a velha questão dos horários.
Sei sim de toda essa vertente do poeta Patativa, o problema é que ela foi descontextualizada para uma possível contextualização de extrema esquerda, sendo que a trajetória do poeta é cheia de outras perspectivas, tão ou mais significativas do que essa possa sugerir.
Sou grato pela sua generosidade.
Pois é Darlan,
ResponderExcluireu também tenho uma formação de esquerda e ficava meio puto com escritos de Jameson ou de Bergmam, mas creio estar hoje mais próximo da crítica do que da proclamação.
abraços e desculpas pela demora
Tá certo.
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