quinta-feira, 21 de maio de 2009

Entre o Bordeaux e o Aluá

Em Matozinho, um vereador fez levar à votação um projeto simplesmente fantástico: tornar todos os cidadãos do município pensionistas, a partir da promulgação da lei, recebendo proventos mínimos de R$ 2000,00 ao mês. Na justificativa, nosso legislador fazia-se enfático: o projeto imediatamente acabaria com a miséria em Matozinho , faria o comércio prosperar e , mais, legaria aos munícipes condições para o lazer e a sobrevivência sem que ninguém precisasse lascar-se de tanto trabalhar e sair por aí suando mais que tampa de chaleira. A idéia parecia brilhante e inventiva, como ninguém ainda havia pensado nisso ? Viver às expensas da viúva desde o nascimento até o Cemitério! Tudo ia às mil maravilhas até que um cri-cri resolveu fazer a pergunta fatal. Feitos os cálculos iniciais, os gastos com a nova lei sobrepassavam os recursos totais de Matozinho em mais de dez vezes. Quem pagaria a conta ?
Esta pequena história, “lá de nós”, vem bem a calhar quando acabamos de apagar as vinte velinhas no aniversário do rapaz. Pois é, o menino já nasceu meio despombalizado, anêmico, zambeta e com bico de papagaio. Teve todas aquelas mazelas de infância que chegaram a preocupar os pais e depois vieram as crises típicas de uma adolescência complicada com rebeldias e caras trombudas. É, amigos, mas agora , o menino se diz dono das ventas, estampa o primeiro buço e uma barbicha meio desalinhada. Os pais não parecem satisfeitos, no entanto. Esperavam mais dele , que já tivesse independência financeira e tomado tento na vida. Mas a paternidade não é sinônimo de paciência e esperança ? O Susto, talvez, venha exatamente porque a criança, por similiaridade semântica, foi batizada exatamente de SUS.
Conseguimos avanços ? Sim, avançamos significativamente. Priorizamos uma Medicina Preventiva ao invés da Terapêutica, como anteriormente. Aproximamos a população das equipes de saúde, com o PSF, melhorando o acesso como jamais ocorrera na história brasileira. Organizamos o Sistema de Saúde Nacional em termos de planejamento estratégico, trabalhando cientificamente os dados epidemiológicos, tendo sido criado um Banco imenso de Dados, alimentado regularmente por todas as Secretarias de Saúde Brasileiras. Melhoramos imensamente os Indicadores Epidemiológicos, com vacinação em massa, diminuição impactante da Mortalidade infantil e das doenças infecto-contagiosas. Então, por que tantas denúncias de desatendimento , de omissão de socorro, de negligência no SUS que a todo momento explodem na mídia ? Por que ninguém está satisfeito com o SUS? Nem os profissionais de saúde, nem os gestores e muito menos os usuários do sistema ? Por que ? Vamos tentar dar algumas respostas pessoais à questão, nós que participamos do parto da criança e acompanhamos seu crescimento e desenvolvimento.
O SUS foi a realização de um sonho de toda uma geração de idealistas do Sanitarismo Brasileiro. Esta utopia se fez presente na Constituinte de 1988, quando na Carta Magna, no Artigo 196 estampou-se a saúde como um direito de todo cidadão brasileiro e um dever do estado. E mais : que este dever era Universal, para todos os brasileiros; Integral, contemplando todas as nossas necessidades de saúde e mais: seria distribuído com Equidade, contemplando mais quem mais dele necessitasse. O sonho era vultoso, não muito diferente do sonhado pelo vereador de Matozinho. Criar um Plano de Saúde gigantesco que contemplasse , hoje, quase 200 milhões de brasileiros , desde o atendimento a um simples “Pano Branco”, até à mais complexa Cirurgia Neurológica. E mais, um projeto de saúde gestado com uma visão socialista, bebida em águas gramscianas, devia ser implantado num universo totalmente dispare, de marcantes cores neo-liberais.
Pois bem, o certo é que , quem sabe intencionalmente, nunca se pôs dinheiro suficiente para alimentar um sonho tão gigantesco. Hoje gastamos em torno de 7,6% do PIB com a saúde no Brasil, aí envolvidos todos os investimentos públicos e privados no setor. Só para se comparar os EUA empregam 15% do PIB, a Alemanha 11%, o Canadá 10% e a Argentina 9 %. Só que no Brasil apenas 45% deste valor é do setor público, mais da metade são de investimentos privados, dos Planos de Saúde. Só que os Planos gastam mais para atender 40 milhões de brasileiros do que o Estado para atender os outros 150 milhões. Em 2007, empregamos pouco mais de mil dólares per cápita para atender todos os brasileiros, os Estados Unidos investiram em torno de U$ 7500,00 por habitante. E sempre é bom lembrar que a saúde tem demandas tecnológicas crescentes, com novos medicamentos, novos equipamentos, novas terapêuticas e estes gastos nos EUA duplicaram na última década. O professor Bosi Ferraz da UNIFESP resume bem o problema : O Brasil precisa satisfazer as demandas de 2009, com investimentos de 1980 e problemas de saúde ainda de 1960.
Com pouco dinheiro disponível para financiar um sonho tão grande é previsível a catástrofe. O lençol ,curto demais, foi puxado para cobrir a atenção primária ( a cabeça do Sistema) e a Atenção Secundária terminou descoberta: o frio é inevitável. O interessante é que grande parte dos que sonharam o sonho estão agora na gestão do sistema e vivendo as agruras terríveis do monstro que ajudaram a dar à luz. Em casa que falta pão, como diz o populacho, todos brigam e ninguém tem razão. O Ministério da Saúde, há alguns anos, fez um grande movimento pelo estabelecimento de remédios genéricos, de preço mais acessível e com bioequivalência testada. Pois bem, todas as prefeituras que conheço, só compram os famosos similares, também chamados de B.O. , simplesmente porque são mais baratos, embora não tenham qualidade comprovada. Incentivam-se medidas como as Farmácias Populares, o Parto Domiciliar, a Alimentação Alternativa, aparentemente por serem mais baratas, como substitutivo a uma terapêutica científica. Fico desconfiado, porque não vejo profissional de saúde tratar o filho com pneumonia com chá de olho de goiaba; nem presenciei casais de ginecologistas preferirem ter o filho em casa e também nunca vi nenhum empresário importante chegar em restaurante e solicitar farofa de casca de banana. Estas medidas só servem para pobres ?
Recentemente chegou ao Supremo Tribunal Federal um debate crucial: o Estado deve assegurar medicamentos caros para todos ? Explique-se : pacientes que necessitam de medicamentos dispendiosos para tratamento de câncer ou doenças degenerativas, sendo negado o fornecimento pelas Secretarias de Saúde, entram na justiça e conseguem por via judicial. As ações têm sido crescentes e só no ano passado foram mais de duas mil, envolvendo um montante de R$ 52 milhões de gastos com estes medicamentos. As secretarias se sentem prejudicadas, pagando medicamentos caros para poucos e , às vezes, impossibilitados pelos gastos, de dar os medicamentos básicos e baratos para muitos, e recorreram ao STF. Primeiro é importante lembrar que só as classes mais favorecidas têm acesso à justiça e os pobres, mais uma vez, levam desvantagem. Por outro lado, muitas vezes o uso destes medicamentos significa morte impedida ou adiada e só quem entende disto é quem tem um problema em si mesmo ou numa pessoa querida. Depois, R$ 52000,00 , em um ano, não é tanto, não é ? Apenas menos de um terço do que o juiz Lalau conseguiu desviar. Mais uma vez , batemos no mesmo problema: não há dinheiro suficiente e se partimos de premissa errada ( ou seja com uma mixaria é possível dar saúde para duzentos milhões de brasileiros) nunca chegaremos a conclusões verdadeiras. Vamos rasgar junto com o STF a Constituição que tão duramente construimos ?
O SUS vive um momento ímpar. Convidamos milhões de pessoas para uma festa onde seriam servidos caviar e vinho Bordeaux. Quando quebramos o porquinho, descobrimos que só há grana suficiente para oferecer mungunzá e aluá. Ou conseguimos verbas extras para cobrir os gastos do evento sonhado ou reconvidamos todos para uma festinha simples , sem muitos riquififes, umas bolachinhas Maria e uma tubaínas para não entalar.

J. Flávio Vieira

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