Os nossos antepassados carregavam consigo dois modos de perceber e perscrutar o mundo, segundo Karen Armstrong: o Mythos e o Logos. Esta dualidade utilizava instrumentos díspares, mas complementares, com o fito de atingir a verdade e cada um possuía sua área específica de atuação. O Mythos remontava às origens da vida, aos fundamentos da cultura e aos níveis mais primais e profundos da mente humana. Reportava-se a significados e símbolos e não a questões práticas. Sem significado preciso, o fardo da existência se torna insuportável. O Mythos criava um contexto que dava sentido ao cotidiano e dirigia a atenção humana para o eterno e o universal. Quando contavam épicas histórias de heróis que desciam do mundo dos mortos, violavam labirintos e dizimavam monstros tenebrosos, as pessoas traziam à luz regiões obscuras do inconsciente, inacessíveis a uma investigação puramente racional. O Mythos só se fazia realidade quando incorporado em cultos e rituais, imantando os homens de um senso de significação sagrada e levando-os a apreender os fluxos mais abissais da existência humana. A pré-modernidade tinha um olhar diferente para o mundo que a cercava, ligava-se mais à significância de cada acontecimento do que ao fato puro e simples.
Na outra extremidade , igualmente importante, existe o Logos : o pensamento racional, pragmático e científico. O Logos, para ser eficaz, necessita ater-se aos fatos e corresponder às realidades exteriores. Se o Mythos conecta-se ao mundo sagrado, o Logos apodera-se da sua face profana. O Logos é prático e avança buscando explorar percepções, adquirir um controle maior sobre o meio, descobrir e inventar novidades. À medida que a ciência se foi firmando, a partir do Século XVII, o Logos exacerbou sua importância e passou-se a tê-lo como único meio de alcançar a verdade. O mundo que a partir dali se foi edificando contradizia a dinâmica da antiga espiritualidade mítica. E os homens passaram a fazer do Logos o Mythos de sua fé. Só que o Logos tem lá sua imensas limitações: não pode aliviar a dor e o sofrimento, a angústia, os mistérios mais profundos da meteórica passagem do homem pelo planeta.
Por que um livro de poesias ?
Se vivemos, segundo Max Weber, enclausurados num mundo que é uma gaiola de aço, uma estrutura reificada e alienada que encerra as pessoas nas leis do sistema como uma prisão ? Por que um livro de poesias? Se transitamos neste mundo de racionalidade limitada, de espírito mercantilista, de lógica mesquinha, do realismo rasteiro da Sociedade capitalista-industrial, do universo do espírito do cálculo racional, uma mera medida quantitativa de perdas e ganhos ? Por que um livro de poesias ? Se habitamos um universo em que o código de barras é muito mais importante que os códigos de ética, Civil e Penal. A racionalidade instrumental, segundo Weber, impregna completamente a vida de nossa sociedade e molda cada gesto, cada pensamento cada comportamento humano. Talvez tenha sido o afastamento absurdo do Mythos que criou a necessidade de desenvolvermos a psicanálise na tentativa desesperada de lidar com nossos anjos e demônios interiores e certamente contribuiu firmemente para que a literatura de Auto-Ajuda, com toda sua superficialidade, vivesse o boom atual. Presos nesta gaiola de aço muitos poetas, atados aos grilhões de um mundo tão pouco glamouroso e sem perspectivas, preferiram a saída pela porta de emergência : Torquato Neto, Virgínia Wolf, Maiakóvsky, Goytisolo, Paul Celan, Gabriel Ferrater, Alfonsina Storni, Kostas Kariotakis, Cesar Pavese,Luiz Hernandez, Maria Poliduri, John Berryman, Ana Cristina César, Sylvia Plath, Byron e tantos tantos outros. Sem falar nos que terminaram no manicômio como Ezra Pound, Geraldo Urano, Dylan Thomas, Artaud e Lima Barreto. E o próprio Pound ( recolhido ao Hospital Psiquiátrico) já havia premonitoriamente vaticinado : “Estou bem aqui, para viver nos Estados Unidos , amigos, só é possível mesmo se for dentro de um hospício !” Tiveram todos que escolher entre morrer de ópio ou de tédio. Esmagados pelas hastes de aço da gaiola , cortaram-se com o canto do papel, enforcaram-se no fio da poesia.
Por que um Livro de Poesias?
Num mundo utilitarista como o nosso, por que um livro de poesias? Se Oscar Wilde já acentuara que toda arte é perfeitamente inútil e Paulo Leminsky acrescentara que um poema é uma objeto inutilitário. Pois bem, amigos, pasmem vocês, a poesia é uma tentativa subversiva de re-encantamento do mundo. Ela tem a capacidade quase que única de reascender no coração humano os momentos mágicos apagados pela civilização burguesa como : a paixão, o amor-louco, a imaginação, o mito, o maravilhoso, o onírico, a revolta, a utopia. A poesia, no dizer, de Michel Löwy é um estado de insubmissão , de revolta que arranca suas forças das profundezas cristalinas do inconsciente, dos abismos insones do desejo,dos poços mágicos do prazer, das músicas incandescentes da imaginação. A poesia nos traz a possibilidade singular de reconectarmos com o Mythos e estabelecer um percurso à deriva, no dizer de Guy Debord, fugindo às leis de ferro do utilitarismo. De escapar do bando que na busca de uma aparente segurança, segue a manada, sem refletir, sem olhar o mundo ao derredor, apenas anda e anda e anda em direção ao penhasco que o espreita, ávido, na próxima curva da estrada . De uma forma lúdica , este ato de ruptura nos lança a um passeio ao reino encantado da Liberdade tendo o acaso como única bússola disponível. Por tudo isso , mais que nunca, a Poesia ,nos tempos atuais, bem mais que um exercício de Liberdade projeta-se como um ato de sublevação contra o engessamento, o empalhamento, o curare mortal do comodismo, do mesmismo, da uniformização das mentes, da clonagem cultural.
(Fragmento da Apresentação do Livro : "O Sol de Cada Coisa" de Batista de Lima, feita por J. Flávio Vieira em 15/05/09 - URCA)
Este é o Zéflávio que gosto de ler.
ResponderExcluirProfundo.Concatenado, com sequência coordenadas e em sucessão.Agregando informações úteis e de interesse geral.
Parabéns!
Abraço Armando, obrigado pelo comentário
ResponderExcluirZéflávio, mais do que uma apresentação do livro de Lima Batista, este texto é um verdadeiro ensaio.
ResponderExcluirAlgures entre o Mythos e Logos, entre a arte e a ciência, entre o individualismo e o coletivismo, se encontra um ponto de equilíbrio e - quem sabe - uma verdade absoluta. Parece-me que um não existe sem o outro. Não ofereço uma resposta, apenas uma visão...
ResponderExcluirEntre um momento e outro, o individuo e o coletivo caminham balançando ora para um lado ora para o outro, buscando esse equilíbrio entre os opostos, onde as naturais e universais buscas por eficiência (utilitarismo) e fuga ou alívio do sofrimento (espiritualismo) não se atropelam uma à outra.
Sem Mythos, arte ou individualismo, torna-se a humanidade uma massa única e homogeneizada - como que um ser único egoísta - composto por partes clonadas sem alma, sem sentimento, frios e incapazes de transformar o velho e criar algo de novo que reanime o Logos.
Sem Logos, ciência ou coletivismo, torna-se a humanidade uma massa fracionada, composta por seres egoístas, emocionais e discordantes e, pela sua dificuldade em colaborar e aceitar conhecimento que contradiga o seu, limitados para evoluir tanto individualmente como coletivamente...
Parece-me que dizer que a arte é perfeitamente inútil é o mesmo que dizer que Deus, o Todo, o Nada, a Natureza ou o Multi-Universo (escolham a definição que quiserem) gerou algo sem função, algo que me custa a aceitar. Mais facilmente aceito que a nossa incapacidade de entender a função da arte é devida ao nosso fracionamento e à nossa incapacidade de colaborar e aceitar conhecimento contraditório. Afinal, não foram muitos dos nossos inventores mais celebrados grandes artistas ou intuitivos também, como Da Vinci e Einstein? E terá sido por mero acaso?
Também não sei se é possível ou até desejável encontrar esse ponto de equilíbrio e aí firmarmo-nos, seja individualmente ou coletivamente, de forma permanente. Parece-me ser o que procuramos, mas - quem sabe - possamos apenas caminhar eternamente em frente, ora com o pé esquerdo, ora com o direito, mantendo-nos o mais próximo possível dele. Sempre mais fácil de fazer do que falar mas, na dúvida, sigo em frente...
Caros Rafael e Thiago,
ResponderExcluirAgradeço de coração pelos comentários. Legal que vcs tenham gostado do texto. Acredito tb nas colocações do Thiago quanto a importância do Logos. Não quis em verdade depreciá-lo, apenas pontificar o afastamento absurdo do Mythos. Quando Wilde e Leminsky lembram a inutilidade da arte, percebo que o fazem na visão clara do utilitarismo. Quanto vale um poema? Para que serve ? Cura dor de barriga de menino? Passa a fome? Constrói-se tamborete com um deles? Acredito que dois artistas do porte deles jamais fariam assertivas tão catastróficas a não ser na visão crua do Logos. Talvbez tenha sido por isso mesmo que tantos poetas tenham desistido de viver num mundo utilitarista e que se afastou completamente do Mythos( raiz de toda arte, mãe de toda poesia).
Eu é que agradeço pelo texto Zéflavio. Aproveito apenas para fazer uma correção no comentário que deixei.
ResponderExcluir"Sempre mais fácil de falar do que fazer..." e não ao contrário (quem me dera)... :)
Há os que escrevem para o presente, há os que escrevem para o futuro...
ResponderExcluirAgradeço tb à Marta pelo comentário. Os poetas são tão essenciais ao destino da humanidade quantos os físicos.
ResponderExcluirBelíssima reflexão. Parabbéns!
ResponderExcluirO grande Bernardo de volta! Estamos sindo sua falta real por aqui , esperamos regresse logo.
ResponderExcluirAbraço,