segunda-feira, 22 de junho de 2009

Comunhão de neto e avô

Se até a moral se modifica com o tempo e o espaço o quê não dizer dos aforismos? Nenhum fica uma eternidade embora possa até enternecer o coração nestas beiradas vespertinas do anacronismo. As pessoas repetem a liça como se ainda estivessem nas velhas batalhas medievais. Cavalheiros e cavaleiros, cavalhadas e patadas. Como neste final de semana na Batateira.

O incidente ocorreu com um quadro dos filósofos da Batateira. Mas precisamente com Chambaril. Ele estava na bodega de Antonio da Bibia jogando baralho na calçada amena da sombra das quatro da tarde. Os carros disparados na curva da estrada, meninos brincando na rua, mulheres gritando e homens da cara enfezada. Uma tarde como destes tempos. Jogavam Chambaril, Joaquim da Luz, Erivaldo (filho de Erivam e Evaldo) e o sessentão do porte sisudo, Armanoel (filho de Erminda e Manoel).

O jogo estava no limbo, nem ânimo ou tédio. Apenas passatempo. Um modo de jogar com apostas de palito de fósforo. Nem álcool molhava a lábia, algum copo de refresco gelado e umas xícaras de café choco naquela garrafa que só é térmica nas referências do passado. Mas tem o cigarro por fumaça envolvente do grupo de jogadores. Alguma tossida e as cartas que embaralham. E como embaralham nas mãos e lá fora.

É que um grupo de meninos corria para pegar um papagaio que alguém cortara a linha e caia próximo da estrada. Armanoel já um tanto irritado com o jogo levanta o olhar e vê o neto mais velho no meio da molecada. Foi a conta para o avô misturar a raiva do jogo com o neto em ação e dar um grito igual a Pedro I no Ipiranga. Aliás, a vocação de Armanoel era real, como gostaria de levantar aquela espada e descer sobre a cabeça dos infiéis e não tementes a Deus.

Contrariado, o menino parou e veio em direção à ordem do avô. Mas não baixou o olhar, o moleque era tinhoso também. O avô passou uma descompostura em regra, longa e detalhada, deveres da escola, ajudar a mãe, vadiagem e até traição ao citar o papel de Judas pelos trinta dinheiros contra Jesus. Foi um mote terrível ter falado da costumeira bíblia que tanto ordenava Armanoel. E o neto, de nariz arrebitado, contesta o avô:

- Oxém Vô e Judas não é o discípulo mais importante de Jesus?

Vixe Maria: Armanoel berrava imprecações com o neto. Sem culpa no cartório os companheiros de jogo também receberam seu quinhão. O velho recitava versículos atestando os números, falava de todos os apóstolos e tome xingamento sobre Judas.

Mas o neto era parente do capiroto e manteve a argumentação: É sim Vô, o padre fala de João e tome Judas, fala de Mateus e tome Judas, diz Tiago e logo Judas. Só dá Judas Vô. Pode ir na missa que só se fala em Judas.

Armanoel citava tudo que tinha conhecimento sobre a traição, sobre o crime, sobre o sofrimento de Jesus. E o neto cutucando o avô:

- Mais Vô e num é por causa disso mesmo que Judas é importante? É que a nossa religião é do crucificado. É a religião daquele que sofre peia, recebe coroa de espinho e morre na cruz. A nossa religião é a religião do sofrimento, do corpo maltratado. A agonia de cada um, sem Deus, sem Roma e sem ninguém de Jerusalém para salvar-lhe do sofrimento. É por isso que os padres precisam tanto do Judas. O Judas é como a fonte da Batateira para o rio. É dele que vem a traição do sofrimento de Jesus e o nascimento da nossa religião.

Armanoel pegou na cadeira, só faltava jogar sobre o neto. Quanta desgraça o mundo lhe dera. Aquele pirralho de merda não lhe merecia o menor respeito e por isso de público fala todos os podres do menino. A sujeira ao dormir, a pouca inteligência nas notas da escola, os maltratos com os irmãos e tome propaganda negativa do neto. Afinal ele até se encontra na posição de bispo e excomunga o neto da igreja. Ele jamais iria comungar na santa missa. Pronto, foi o anatematismo do avô que deu um efeito reverso e levou o neto a uma sentença mortal sobre tudo o mais:

- Eita Vô esta religião é de canibal. Todo dia as pessoas engolem o corpo de Cristo. Eu já estava até pensando nisso mais agora que o senhor me expulsou tudo se resolve.

- Resolve não seu desgraçado. Tu não tinha que está lá mesmo seu ateu safado. Seu comunista de merda, seu anticristo dos infernos. Tu não tinha que está lá mesmo.

O jogo não pôde continuar.

Chambaril pensava refletir o debate com a turma de filósofos.

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