Rejane Gonçalves
No último andar, o casal de noivos equilibra-se, abandonado à própria solidão. O último andar é o menor. É possível que, de tão pequeno, não abrigue de maneira satisfatória o homem vestido em seu elegante fraque de risca de giz e a mulher em seu vaporoso vestido branco, caso os dois, por não suportarem o cansaço, desistam de proteger o engomado das roupas e achem melhor se deitar. Os pés do noivo, sem o devido apoio, sobrariam e o verniz dos sapatos pretos emitiria desnecessárias cintilações. O véu da noiva de tão comprido cairia pelas paredes, da derradeira à primeira esfera, destruindo, na queda, em determinados trechos, o contorno de cada círculo. Sim, de cada círculo; esqueci de dizer que, nesta construção, todos os andares são redondos, circulares; também esqueci de falar que as formas perfeitas são as esféricas. Redonda é a terra em que vives, jamais te esqueças. Redonda é a linha que te leva do nascimento à morte. Circular é o movimento do teu sangue a ir e vir nas veias. Respeita o uróboro, lembra do eterno retorno e, se queres mesmo continuar esta leitura, não te esqueças de que terás de entrar na roda. Girar.
Vem, começou um ajuntamento ao redor do casal. Acompanha o olhar das pessoas. Para a tua compreensão aviso que, estranhamente, o olhar dá voltas. O que via só os noivos, agora, vê a beleza distribuída com sabedoria do último ao primeiro andar. Seria proveitoso que observasses o acetinado da cor que perpassa por todos eles. Redondos, dizem, versões aprimoradas, em tamanhos diversos, em cor branca, deste nosso planeta azul. Imagina a Terra aplainada nos pólos e depois fatiada em cinco circunferências semelhantes. Eu não disse iguais. No térreo, fica a maior dessas partes. Nela, tudo começa e termina. É ali que está plantada a primeira série de pilotis, aquela que sustentará o peso de todos os andares, embora não esteja nessa história, sozinha. Entre um andar e outro a série de pilotis é repetida. Sobre essas colunas, já te preveni que todas têm baixa estatura, compleição que despreza a força em favor da beleza e que a ninguém importa se elas são capazes de sustentar a integridade da construção.
Ainda que incomodadas, ainda que tontas, as pessoas rodam e, se apesar dos percalços, perseveraste, devo concluir que estejas de acordo em acompanhá-las; vai, quero que observes o movimento das ramagens enroscadas nos pilotis. Não é a toa que todos andam em círculo, desenhando voltas e mais voltas em torno deles. Ouve, é preciso que ouças o que sussurram, nos ouvidos uns dos outros, homens e mulheres que acompanham o rastro circular da serpente: se pudéssemos tocar nesses galhos floridos, passar a pele na delicadeza dessa pétala, dessa outra, dessa outra mais; se o sopro se tornasse possível e o que nos saísse da boca parecesse tão leve, que se assemelhasse ao volteio incessante das folhas que se abrem e se dobram, obedecendo a um interessante desacerto no ritmo; ah, se o acesso nos fosse dado ao impossível. Seria bom não te esqueceres da sinuosidade daqueles ramos, de admirar a dança, o traço oblongo, a curva que prepara o vôo. Não percas tempo com o artista, embora eu desconfie que, por uma questão de vida ou morte, seria proveitoso saber onde se esconde quem tem mãos assim, tão terrivelmente hábeis. Anjo ou demônio?
Num giro devagar, aos poucos, as pessoas notam que construções daquele tipo já não são comuns, tu também percebeste. Elas fizeram estilo, foram donas absolutas, em uma determinada época, o que não impede que repitam a hegemonia em outra época qualquer, basta que o aro, onde permanecem suspensas, gire e volte. Hoje, precisas saber que, quadrados, redondos ou hexagonais, os andares são construídos diretamente uns sobre os outros, cada um, deixando ao que lhe ficou embaixo uma margem livre; por isso a construção vai se afunilando, daí o último andar, num caso e no outro, ser o menor. Com ou sem colunas é mantido o direito ao espaço livre do andar que sustenta o próximo, pelo menos neste tipo peculiar de construção.
Para ver os noivos mais de perto, as pessoas se achegam e cingem a primeira forma esférica. Cada uma quer um lugar privilegiado que lhe permita o domínio sobre o casal, a superação que lhe garanta a esperteza frente à pessoa vizinha. Tu não és diferente. Conseguiste um ótimo lugar, um fotógrafo, ainda que mediano, concordaria comigo, ao assegurar que aí, onde te encontras, deténs o ângulo perfeito. Diz-me, por favor, o que vês?
Aproximam-se os noivos, chegam ao pé dos brancos andares, tomam um gole entrelaçado de champanhe, armam-se com uma espátula de prata e as duas mãos, uma da mulher, a outra do homem, pressionam a lâmina sobre o corpo redondo do primeiro andar, o térreo, a base. O vértice da espátula afunda a uma distância considerável do eixo, enquanto a sobra da lâmina mergulha lenta e precisa em direção às bordas. O grande corte deixa à mostra uma carne escura, espécie de massa marrom cheia de pontos mais ou menos uniformes, de consistência ímpar, difícil de ser apreendida de imediato, ora gelatinosa, ora feito pedras de um colorido difuso, meio transparente; lembram-me frutas cristalizadas. A espessa camada de tinta que recobria as paredes, descasca e solta na bandeja torrões de açúcar. Os noivos se presenteiam, com o primeiro pedaço. Intromete-se um garçom e, numa destreza impressionante, transforma em fatias todos os andares bordados de branco, para distribuí-los às pessoas que os circundam e às outras, sentadas em volta de pequenas mesas paramentadas e redondas. Recebo um, e antes da primeira garfada, noto que o garçom preservou o último andar. Este, escuto, será sepultado em uma embalagem especial e guardado no freezer por um ano. Ao fim desse prazo, os noivos poderão comê-lo, como reza o atual costume.
Acabas de perder o teu lugar e por isto não podes ver que alguém – decerto penalizado com a solidão dos pequeninos noivos feitos de porcelana, cópias mais bem acabadas que os originais confeccionados de carne e osso – retira-os do topo da construção, coloca o homem de fraque de risca de giz e a mulher de vestido vaporoso na bolsa de pérolas falsas e abandona a festa com eles. Ninguém percebe o sumiço do casal. Tu não és diferente. Quando completas a terceira volta, preocupo-me ao ver que paraste, com a expressão envergonhada daqueles que esbarram numa parede de vidro e se acham estúpidos; como é possível que logo eu não tenha notado a transparência?
─ O bolo, vejam só, o bolo, ele mesmo, com seus andares despedaçados, lembra um edifício vítima de um bombardeio, onde, por um estranho capricho, a torre se mantém intacta.
─ O senhor está bêbado?
─ Não. Claro que não. Basta olhar de todos os ângulos. Completar o círculo. Girar.
Maio-2009.
Por favor você poderia colocar este texto na página principal. Seria muito bom que outras pessoas podessem refletir com a leitura dele. Obrigada. Clara
ResponderExcluira dor que dói mais.
Trancar o dedo numa porta dói. Bater com o queixo no chão dói. Torcer o tornozelo dói. Um tapa, um soco, um pontapé, dóem. Dói bater a cabeça na quina da mesa, dói morder a língua, dói cólica, cárie e pedra no rim. Mas o que mais dói é saudade.
Saudade de um irmão que mora longe. Saudade de uma cachoeira da infância. Saudade do gosto de uma fruta que não se encontra mais. Saudade do pai que já morreu. Saudade de um amigo imaginário que nunca existiu. Saudade de uma cidade. Saudade da gente mesmo, quando se tinha mais audácia e menos cabelos brancos. Dóem essas saudades todas.
Mas a saudade mais dolorida é a saudade de quem se ama. Saudade da pele, do cheiro, dos beijos. Saudade da presença, e até da ausência consentida. Você podia ficar na sala e ele no quarto, sem se verem, mas sabiam-se lá. Você podia ir para o aeroporto e ele para o dentista, mas sabiam-se onde. Você podia ficar o dia sem vê-lo, ele o dia sem vê-la, mas sabiam-se amanhã. Mas quando o amor de um acaba, ao outro sobra uma saudade que ninguém sabe como deter.
Saudade é não saber. Não saber mais se ele continua se gripando no inverno. Não saber mais se ela continua clareando o cabelo. Não saber se ele ainda usa a camisa que você deu. Não saber se ela foi na consulta com o dermatologista como prometeu. Não saber se ele tem comido frango de padaria, se ela tem assistido as aulas de inglês, se ele aprendeu a entrar na Internet, se ela aprendeu a estacionar entre dois carros, se ele continua fumando Carlton, se ela continua preferindo Pepsi, se ele continua sorrindo, se ela continua dançando, se ele continua pescando, se ela continua lhe amando.
Saudade é não saber. Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos, não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento, não saber como frear as lágrimas diante de uma música, não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche.
Saudade é não querer saber. Não querer saber se ele está com outra, se ela está feliz, se ele está mais magro, se ela está mais bela. Saudade é nunca mais querer saber de quem se ama, e ainda assim, doer.
Martha Medeiros