segunda-feira, 3 de agosto de 2009






Arte e artifícios

Desde a propagação dos mitos e das lendas, fundadoras do inconsciente coletivo da humanidade, existem conceitos e definições de arte. A fragilidade dessas elaborações teóricas findantes se dá pelo fenômeno da sincronicidade entre o objeto de arte e o espectador. Entre eles existe um vasto espectro de meios e fins, articulados e desarticulados, construídos ou desconstruídos, que se movimentam esteticamente dentro do implacável arcabouço do tempo, do espaço e da história.

Tendo como ponto de partida o livro “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, de José Saramago, mas não como de chegada, pois isso é irrelevante na abordagem da arte, é possível perceber que a criação artística pode até parecer um caminhão de japonês canonizado como o ensimesmamento absoluto da coletividade, mas quando se chega perto é mais possível ainda perceber que cada um tem intestinos e metabolismos próprios, como merdas e proventos distintos. O que define verdadeiramente o fedor da bosta e a eficácia do alimento é a perplexidade crítica do indivíduo diante do objeto.

O enredo do livro não poderia ser mais simples: Ricardo Reis volta do Brasil para Portugal, após a morte do poeta Fernando Pessoa. Uma pincelada solta no impressionismo lúdico das relações interpessoais. Nada mais próprio, nada mais singular, nada mais recolhido ao privado, se não fosse a grandiosidade da inserção criativa, que transborda existências fictícias ou históricas, em ramificações, em derivações e em mosaicos que tendem para o assimétrico a partir das profundezas da sua simetria. Mas é preciso estar atento, pois os códigos dessa obra de arte não trazem manual do proprietário, só mesmo a possibilidade de devolução, caso a satisfação do consumidor não tenha sido garantida. O que é essa a essência legitimadora de toda grande obra, inserida no vasto e esquisito mercado das trocas simbólicas.

As interações criadoras se multiplicam nesse livro feito uma espécie inovadora da criação em abismo (mise em abyme), teorizada pela primeira vez, em 1893, pelo escritor francês André Gide. Ricardo Reis é um heterônimo de Fernando Pessoa, que por sua vez é retomado por Saramago para dar luz ao fim dos seus dias, próximo do seu criador. Mas acontece que Ricardo Reis chega do Brasil a bordo do navio Highland Brigade, lendo o livro “The god of the Labyrinth”, do escritor Herbert Quain, sendo que tanto o livro como o escritor foram inventados por outro escritor, Jorge Luis Borges. Quando Ricardo Reis vai embora para o além, com Fernando Pessoa, depois da simbologia mágica dos nove meses, para vida e morte, ele leva debaixo do braço o livro que ele não consegue terminar de ler, durante toda a narrativa.

Eis a abertura desse livro monumental: “Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheia nas lezírias. Um barco escuro sobe o fluxo soturno, é o Highland Brigade...” Essas palavras iniciais configuram o encantamento fantástico que permeia as 428 páginas desse magnífico exercício de pura arte. O labirinto, as concepções de deus e suas criaturas, dão as caras, de forma extremamente complexa, desde as primeiras palavras. “Aqui o mar acaba e a terra principia.”, é uma intertextualidade invertida do verso que inicia “Os lusíadas” de Camões. Evocando e invocando a suprema fusão épica entre história e ficção. As águas turvas, a cidade pálida, o barco escuro, o fluxo soturno, nos remetem direto à travessia do Aqueronte, ao âmago do maior enigma da humanidade: a morte e seus desdobramentos em labirintos.

Mas esse é apenas um livro que não se enquadra no conceito de arte utilitária. E nem em qualquer outro conceito existente de arte. É apenas arte. Os aspectos que segredam as relações internas e externas do leitor com o livro se estruturam de forma particular, mas a partir de um universo próprio do autor, concebido como um aparelho e não como um aparelhamento. São epifanias mútuas. No entanto, nada impede que em sua teia criativa, o autor insira elementos críticos da, sobre e para a história viva dos homens, enxertados em suas culturas e em seus universos que procriam outros universos. Mas isso é apenas arte. Ou como melhor diz o próprio Herbert Quain em carta escrita para Jorge Luis Borges, no dia 6 de março de 1939: “Sou como as odes de Cowley. Não pertenço à arte, mas à mera história da arte.”

E se o leitor não tiver esses elementos para uma possível compreensão do material estético do autor e do seu aparato criativo? A obra de arte, momentaneamente, não se completa. Mas apenas momentaneamente, pois o seu caráter, como criação, é mesmo fragmentário e descontínuo, ela está viva, independentemente do seu espectador. Obra de arte para mim é isso, o resto é artifício. É claro que esse é um propósito crítico. Como da mesma forma é proposital a inserção da obra de Quain, na obra de Borges, na obra de Saramago, em contraponto com as obras de Fernando Pessoa, Ricardo Reis e Camões.

Não é à toa que o conto de Jorge Luis Borges, de onde saiu a intertextualidade de Saramago, tem o título de “Exame da Obra de Herbert Quain”. Trata-se de um ensaio crítico. São espelhos que se replicam em forma criativa. De forma irônica o tema da complexidade estética da obra de arte é colocado em pauta no conto, em que são citados Flaubert, Henry James e Shakespeare. Ironia maior é o crítico e Herbert Quain não concordarem que essa seja a essência da obra de arte, eles defendem a simplicidade do comum. A ironia se torna mais sintomática quando os dois concordam, também, que o fato estético não pode prescindir de algum elemento do assombro. Eis a provocação de dois artistas excepcionais, que não tinham a menor condescendência com a ignorância artística dos seus possíveis leitores.
De fato, que a ignorância se exploda!

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