Tem o papo meio batido de que Jorge Luís Borges supunha ser o livro tão somente uma repetição do possível. Ou seja, que tudo em literatura carecia de originalidade. Que os antecessores de qualquer escritor eram quem, no fim das contas, sopravam furtivamente frases ao pé de ouvido da sua vítima, desavisada e cheia de si, crendo estar criando algo novo.
Toda e qualquer obra deve ser considerada uma primazia. Ao menos para seu autor. Para mim, ser escritor é acreditar em si próprio. Reinventar a própria vida e carregar aquela arrogância típica de quem se acha Deus. É requisito básico para manter vivos os que escrevem. Aquelas pessoas metidas em noites sem fim, fumando seus cigarros ou não - para fugir do clichê barbado-fumante-tristonho-beberrão. Crédulas e donas de uma suposta estupidez necessária e vital.
E para tais figuras pouco importa se algum autor lhes sopra frases feitas no ouvido. Fazendo-o repetir algo que já foi, certamente, escrito. Pouco deve interessar se seus livros não funcionam. Ou se são umas belas merdas de capa dura: ainda assim, deve-se seguir em frente. Teimoso, arredio e burro. Mas dotado de alguma beleza que os diferencia dos demais.
Obviamente não defendo a tese de que todos são bons escritores. Estou falando de fé. Se ao menos a crença e uma deliberada cegueira não rolar no ato da escrita – aquele momento inspirado e meio louco; um ou dois palmos acima do chão -, melhor entregar os pontos, parceiro. Nada mais justo. Para todos.
Na verdade, suponho que o Borges queria dizer o quanto apreciamos uma gama de escritores que nos atormentar o juízo quando mais precisamos criar novos mundos sem interferências. E novas formas de dizer coisas que nos sufocam. Creio que o recado era simples: somos tributários de nossos autores, das nossas influências, da nossa estante. Ponto final. E isso para quem se propõe a resenhar uma obra é ótimo. Facilita entrar numas de traçar paralelos. Simplificar tudo fazendo comparações. Dando o caminho das pedras, que algumas vezes são pontudas e/ou escorregadias. E te levam para o breu.
Seguindo tais pedras corremos risco. E a vida ganha um brilho insuspeito.
Matriuska (Iluminuras, 2009, 95p.) me veio numa sexta onde eu, cansado e feliz, não esperava nada mais que o cair da tarde para umas cervejas e outras ondas à beira rio. Seria tudo simples, mas não menos gratificante. Ou seja, na busca de recuperar minhas derradeiras utopias – pois é isso que faço quando atravesso a BR e vou baixar em uma velha terra conhecida -, já sacava que os dias teriam aquela aura meio louca; aquele vagar e aquela mesma pegada.
Mas isso é outra história.
A primeira leitura foi rápida. Afinal estava com um livro curto, na quantidade de páginas. Supus não me demorar no entendimento. Logo entenderia os preceitos, veria finais relativamente óbvios e concordaria com o Borges, ainda que isso soe pretensioso pra caralho. Mas fui pego de supetão. E tive de repetir uma, duas, três vezes o mesmo ritual de esquecer todo o resto e deixar a cabeça viajar na estranheza dos textos.
Primeiro foram os títulos. Contos – se forem – chamados “sundown”, “zero-cal”, “carefree”, “barbie” e “déjà vu” merecem ou um desprezo certeiro, ou uma atenção preciosa. Conhecendo Sidney, optei pela segunda. Então acendi meus cigarros e silenciei por dentro. Porque o barulho viria. E era inevitável.
Um novo tipo de subversão – intencional ou não, that’s the question. O fio condutor, bastante arriscado como tema numa terra onde artistas supõem entender esse abismo de sorriso fácil e loucura entre os dentes: a mulher. Nada desse papo boçal de entender o sexo oposto. Sidney preferiu o sexo avesso, ao avesso. Seus personagens quando não gritam, reivindicam sua existência de forma sorrateira. Tornam-se inesquecíveis, vão para a cama com você, te propõem uma chupada a dez paus ou te pedem para contar sobre sua mais recente viagem, enquanto confessam: “Preciso sair daqui”.
“ela virou o rosto. olhou um pouco para um vazio de séculos que mora dentro dela. não gozou. mas quando lambeu os lábios, deixou que a saliva inundasse a boca (...). ouvi um guincho de ar entrar pelo peito, um fumo, talvez outro espírito, que não o dela. (...)” (zero-cal, página 19)
“1. marisa não podia se guiar pela estrela do sol, porque cega e seca (...). pelo pára-brisa (num lugar donde até mesmo a brisa fugiu), a sua silhueta fumegava para nascer em halos do asfalto derretendo. (...)” (sundown, página 15)
Mandar a pontuação para a puta que pariu. Sacudir estereótipos e revigorar o absurdo na literatura, sem dar bola para escritores que sopram as mesmas e caquéticas frases feitas no ouvido. Disparar suas frases-flecha ao acaso, como quem mira no escuro, ou no copo colocado de sarro na cabeça da senhora Burroughs – e o velho Willian metido com a heroína de sempre e suas colagens cut up pretensamente vanguardistas, mas ininteligíveis e chatas, convenhamos. As histórias importam. Mas como elas surgem, esse tal zero absoluto tão raro, é o que me faz afirmar ser Matriuska um livro fabuloso.
E o que diferencia Sidney Rocha do resto é justamente isso: seu absurdo é musical, vivo, apesar do cortejo incessante da morte, outro tema presente e insinuado. Nada dessa onda de experimentar, meter palavras num liquidificador, sacudir e ponto final, para depois curtir o urinol do Duchamp cheio de pompa e com a cabeça saturada de merda. Sem essa de não ser compreendido e abrir o berreiro num boteco sujinho, cheio de auto-indulgência. Os contos do autor de Sofia, uma ventania para dentro (Ateliê Editorial, 2005, 208p.) nos pegam no contrapé, tornando crível – mas nem por isso sacal – todo um mundo que sai, sabe-se lá como, da cabeça desse escritor.
Uma poltrona de hotel que sonha (“egg”, página 81) e o conto chamado “nuvem” (página 45) me parecem excelentes exemplos. É o mesmo que dizer: senhores, a alma feminina está mais distante de nosso entendimento do que imaginamos; a morte, nem tanto. Eu, você e o Jorge Luís, amante dos livros, ainda que não os enxergasse, podemos estar errados, meu camarada.
Para mim, Rocha partiu do zero absoluto. Meteu-se confortavelmente no limbo das influências, dominador de suas capacidades literárias, para criar Matriuska. Um artesão, que concebe algo totalmente novo no território louco da criatividade. Dando um novo sentido ao impossível, partindo de um buraco negro, de um vazio de vozes. É como se ele tivesse esquecido tudo que leu. Ou tivesse tapado os ouvidos quando um ou outro escritor moribundo tentou lhe encher o saco. De fato, não consigo enxergar uma influência direta ou disfarçada. Nada de velho reside no livro - o velho não cabe ali.
Posso estar enganado. Afinal, como sempre digo, minha biblioteca é limitada. Ao limite de meu gosto. E do meu deleite, pessoal e intransferível. Mas não consegui perceber o que o argentino me disse um dia. Prefiro outro, que me falou categórico: “A tradição dessa política que pede o impossível é a única que pode nos justificar.” * E assim vou seguindo. Arriscando meu tempo com livros desse quilate. Ganhando território e ampliando as possibilidades. Só assim, meus chapas, a porra da vida vale a pena.
* a frase é do escritor Ricardo Piglia
Mais sobre o livro:
http://sequicosacro.blogspot.com/
http://www.youtube.com/watch?v=v-M5X8wSW2M
www.brasilnet.com.br/matriuska
SERVIÇO
LIVRO: Matriuska
AUTOR: Sidney Rocha
EDITORA: Iluminuras
VALOR: R$ 35,00
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