segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

O cão de Petúnia


Rejane Gonçalves

Petúnia escreve com ódio, venho observando. Bate no rosto das palavras, aperta-lhes o pescoço e já estrangulou tantas, que me acostumei. Ninguém descobre os crimes. Eu mesmo faço covas rasas no quintal, enterro as infelizes, deixo-lhes uma petúnia em cima do túmulo e nos mudamos para alguma dessas cidadezinhas, onde todos sabem da vida de cada um, mas antes que se inteirem da verdadeira profissão de Petúnia, eu já depositei a flor e pegamos a estrada.
Não sei por que me deu vontade de espionar o repouso dolorido das palavras de Petúnia. Forço a fechadura da gaveta e leio tudo o que Petúnia guarda lá dentro; pela temperatura de alguns papéis, a umidade da tinta, o cheiro inconfundível de livro novo, dá para perceber que algumas acabaram de ser escritas. Faz-se um redemoinho dentro de minha cabeça, um gosto amargo da ração de não sei quando me vem à boca, mexo, para cá e para lá, minhas fortes mandíbulas, recolho as grandes patas dos papéis, eriçam-me os pelos; é tudo tão delicado, todas as palavras estão bem alimentadas, semblantes amenos, cabelos soltos nos travesseiros, ou amarrados com belos laços de fita, respiração cadenciada dentro de um ritmo sem sobressaltos, movimentos sutis, sono tranquilo; mesmo se alguma se revira na cama o faz de modo a não incomodar as outras. Petúnia é uma mãe cuidadosa, protetora, perfeccionista, extremada, eu constato. Quem, então, eu enterro em covas rasas nos quintais? Tento ficar calmo, posso esperar para perguntar à própria Petúnia, assim que Petúnia chegar em casa. Envelheci feito o camponês de Kafka à porta da Lei. Morro sem ver Petúnia. Não me culpem. O que vocês queriam, afinal? Sou apenas um cão hidrófobo. O cão de Petúnia.

(Para Murilo Rubião, por Petúnia)
Outubro-2009

Nenhum comentário:

Postar um comentário