sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

As portas do dia - Por Emerson Monteiro

Às notas suaves de uma canção francesa que invadem o espectro grandioso da manhã seguem-se-lhes cantos de pássaros nas mais altas árvores próximas, enquanto os primeiros caminhantes deslizam a sonolência da véspera na faixa estreita que habita o trecho entre a imaginação e o colostro do alvorecer. Orvalho tímido reflete nos seus espelhos côncavos os primeiros raios do sol em forma de arvoredo, nas bordas laterais dos caminhos. Cedo rangem as tábuas das largas portas do dia. Quais pensamentos irrequietos, as borboletas brincam no rendado verde das encostas, quais lampejos experimentais de um pintor imaginário a sacudir de seus pincéis embebidos na tinta o azul bem terno do céu.
Nuvens em fiapos escorregam junto dos bichos que apeiam das árvores para somar no meio das coisas do chão
Uma história que preenche o vazio de tudo escrito nas folhas da mata, no trinado de insetos e latidos de enlanguescidos cães.
Os detalhes sincopados aos poucos surgem dos sonhos e formam a cena. A saudade das estrelas que dormiram há instantes, os retalhos do escuro que esclareceu de ruídos acordados a fimbria avermelhada do horizonte, animais friorentos, umedecidos nas gotas de chuva da véspera, flores minúsculas, filão adocicado nos lábios de amores enigmáticos, quase feitiço de casebres distantes, de cujas chaminés escapam os algodões das mesmas nuvens esfiapadas nos arames das cercas aveludadas de melão de são caetano.
Interrogações aprofundadas na pele dos gibões de couro no lombo dos velhos burros de carga em rumo das ruas da feira. Trilhas corridas, marcas de cicatrizes na melodia dos boleros guardados no coração dos personagens, no drama da vida.
Quadro pousado no resumo da paisagem durante o intervalo das cartas atiradas ao vento, realejo sofisticado, turmas barulhentas de pequenos exemplares de novas espécies inexistentes, ondas turvas e filamentos de nervos rasgados no róseo nascente aparecido de surpresa.
Nisso, lembrança forte do encontro guardado de corpos nas águas do riacho risonho no declive erótico da serra. Lábios carnívoros ferozes e cristalinos a saborearem os nacos apetitosos do prazer maravilhoso de melhores espetáculos possíveis entre dois seres.
Quantas impressões da viagem resistiram ao tempo do sobrevôo ao silêncio do coração de cada um, dosagens inesperadas no encaminhamento das páginas; lua transparente no rabisco da colina, calma estonteante das pautas musicais que escalonam o espaço e invadem a ramagem em volta.
Ímpeto de querer achar o ritmo da sinfonia das horas ao abrir intenso das folhas do palácio da natureza, de manhã cedo, saltos de pulsares e murmúrios de vontade no fio que tece a história de todos nos bilros do mistério persistente.

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